quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Daniel Kahneman

 O controlador preguiçoso

O Sistema 2 possui uma velocidade natural. Você gasta alguma energia mental em pensamentos aleatórios e em monitorar o que acontece em torno de si mesmo quando sua mente não faz nada em particular mas há pouca tensão. A menos que você esteja numa situação que o deixe extraordinariamente cauteloso ou constrangido, monitorar o que acontece no ambiente ou dentro de sua cabeça exige pouco esforço. Você toma várias pequenas decisões conforme dirige seu carro, absorve alguma informação conforme lê o jornal e conversa amenidades rotineiras com um cônjuge ou colega, tudo com pouco esforço e nenhuma tensão. Exatamente como um passeio.

A transição para uma caminhada mais acelerada acarreta uma acentuada degradação em nossa capacidade de pensar coerentemente. [...] A capacidade de levar uma cadeia de pensamentos a uma conclusão fica igualmente prejudicada. [...] Autocontrole e pensamento deliberado aparentemente exigem o mesmo orçamento limitado de esforço.

Para a maioria de nós, na maior parte do tempo, a manutenção de uma cadeia coerente de pensamento e o ocasional envolvimento de um pensamento trabalhoso também exigem autocontrole.  Embora eu não tenha conduzido um estudo sistemático, desconfio que a comutação frequente de tarefas e a aceleração do trabalho mental não sejam intrinsicamente prazerosos, e que as pessoas os evitam na medida do possível. É assim que a lei do menor esforço se torna uma lei. Mesmo na ausência de pressão do tempo, manter uma cadeia de pensamentos coerente exige disciplina. Alguém que observe o número de vezes que verifico meus e-mails ou olho dentro da geladeira durante uma hora em que estou escrevendo poderia inferir razoavelmente uma vontade de escapar e concluir que me manter na tarefa exige mais autocontrole do que sou capaz de reunir.

[...] As pessoas às vezes empregam esforço considerável por longos períodos de tempo sem ter de empregar a força de vontade. Um estado de fluxo, de atenção sem esforço. As pessoas que experimentam o fluxo descrevem-no como “um estado de concentração sem esforço tão profundo que elas perdem a noção do tempo, de si mesmas, de seus problemas”, e suas descrições de alegria desse estado são tão persuasivas que Csikszentmihalyi o chamou de uma “experiência ótima”. Muitas atividades podem induzir uma sensação de fluxo, desde pintar até participar de uma corrida de motocicletas – e para alguns escritores sortudos que conheço, até escrever um livro é muitas vezes uma experiência ótima. O fluxo separa distintamente as duas formas de esforço: concentração na tarefa e controle deliberado da atenção. Correr de moto à 250 km/h e disputar uma partida competitiva de xadrez são sem dúvida ações muito trabalhosas. Em um estado de fluxo, porém, manter a atenção concentrada nessas atividades absorventes não exige nenhum emprenho do autocontrole, desse modo liberando os recursos para serem dirigidos à tarefa que se apresenta.

O OCUPADO E ESGOTADO SISTEMA 2

Tanto o autocontrole quanto o esforço cognitivo são formas de trabalho mental. [...] Pessoas que são desafiadas simultaneamente por uma tarefa cognitiva exigente e por uma tentação muito provavelmente vão ceder à tentação. [...] O Sistema 1 exerce maior influência no comportamento quando o Sistema 2 está ocupado. [...] Pessoas que estão cognitivamente ocupadas também têm maior probabilidade de fazer escolhas egoístas, usar linguajar sexista e fazer julgamentos superficiais em situações sociais. Algumas doses de álcool exercem o mesmo efeito, assim como uma noite insone. O autocontrole de pessoas que acordam cedo fica prejudicado à noite; o inverso é verdadeiro para pessoas notívagas. Preocupação demasiada sobre estar executando bem uma tarefa às vezes atrapalha o desempenho ao carregar a memória de curto prazo com pensamentos ansiosos desnecessários. A conclusão é inequívoca: autocontrole exige atenção e esforço.  Controlar pensamentos e comportamentos é uma das tarefas que o Sistema 2 realiza.

[...] Se você se vê forçado a fazer algo, fica menos disposto ou menos capaz de exercer autocontrole quando o próximo desafio se apresenta. O fenômeno tem sido chamado de esgotamento do ego. [...] As pessoas de ego esgotado (ou esgotamento do autocontrole)  sucumbem mais rapidamente à necessidade de desistir. [...] Todas as situações e tarefas causadoras de esgotamento do autocontrole envolvem conflito e a necessidade de suprimir uma tendência natural.

Atividades que impõe altas exigências ao Sistema 2 requerem autocontrole, e a aplicação de autocontrole é exaustiva e desagradável. Ao contrário da carga cognitiva, o esgotamento do ego é ao menos em parte uma perda de motivação. Após exercer o autocontrole numa tarefa, você não se sente disposto a empreender esforço em outra, embora pudesse, se realmente tivesse de fazê-lo. [...] Esgotamento do ego não é o mesmo estado mental que ocupação cognitiva.

A ideia de energia mental é mais do que uma simples metáfora. O sistema nervoso consome mais glicose do que outras partes do corpo, e atividade mental trabalhosa parece ser particularmente dispendiosa na moeda da glicose. Quando você está ativamente envolvido em um raciocínio cognitivo difícil ou ocupado numa tarefa que exige autocontrole, seu nível de glicose no sangue cai. O efeito é análogo a um corredor que suga glicose armazenada em seus músculos num tiro. A implicação óbvia dessa ideia é que os efeitos dos esgotamento do ego podem ser anulados com a ingestão de glicose, e Baumeister e seus colegas confirmaram essa hipóteses em diversos experimentos.

Erros intuitivos são muito mais frequentes entre pessoas com esgotamento do ego.

Juízes cansados e com fome tendem a incorrer na mais fácil posição default de negar os pedidos de condicional. Tanto o cansaço como a fome provavelmente desempenham um papel.

O PREGUIÇOSO SISTEMA 2

Uma das principais funções do Sistema 2 é monitorar e controlar pensamentos e ações ‘sugeridos’ pelo Sistema 1, permitindo que parte deles sejam expressos diretamente no comportamento e suprimindo ou modificando outros.

Shane Frederick. Teoria do julgamento baseada nos dois Sistemas. Até que ponto o Sistema 2 monitora de perto as sugestões do Sistema 1?

Muitas pessoas são superconfiantes, inclinadas a depositar excessiva fé em suas intuições. Elas aparentemente acham o esforço cognitivo no mínimo moderadamente desagradável e evitam no máximo que podem.

Todas as rosas são flores.
Algumas flores murcham rápido.
Logo, algumas rosas murcham rápido.

Esse experimento tem implicações desencorajadoras para o raciocínio na vida cotidiana. Ele sugere que quando as pessoas acreditam que uma conclusão é verdadeira, também ficam muito propensas a acreditar nos argumentos que parecem sustentá-la. Mesmo que esses argumentos não sejam confiáveis. Se o Sistema 1 está envolvido, a conclusão vem primeiro e os argumentos se seguem.

Fatos que sabemos nem sempre vêm à mente quando precisamos deles. Depende da função automática da mente. As pessoas diferem a esse respeito. [...] Inteligência não é só a capacidade de raciocinar; é também a capacidade de encontrar material relevante na memória e mobilizar a atenção quando necessária. A função da memória é um atributo do Sistema 1. Entretanto, qualquer um conta com a opção de reduzir a velocidade – lentidão – para empreender uma busca ativa na memória. O grau de checagem e busca deliberadas é uma característica do Sistema 2, que varia de indivíduo para indivíduo. [...] O fracasso parece ser, pelo menos em certa medida, uma questão de motivação insuficiente, de não tentar com bastante ênfase.

Estudantes são capazes de resolver problemas muito difíceis quando não ficam tentados a aceitar uma resposta superficialmente plausível que venha ã mente. A facilidade com que eles se satisfazem o suficiente para pararem de pensar é inquietante. “Preguiça” é um veredito duro sobre o automonitoramento desses jovens e seu Sistema 2, mas parece injusto. Os que evitam o pecado da indolência intelectual poderiam ser chamados de “empenhados”. São mais alertas, intelectualmente mais ativos, menos dispostos a se satisfazer com repostas superficialmente atraentes, mais céticos acerca de suas intuições. O psicólogo Keit Stranovich diria que são mais racionais.

INTELIGÊNCIA, CONTROLE, RACIONALIDADE

Pensamento e autocontrole: Se as pessoas fosse classificadas segundo seu autocontrole e segundo sua competência cognitiva, os indivíduos teriam posições similares nas duas classificações?

Crianças que exigem maior autocontrole aos 4 anos de idade objetem notas substancialmente mais altas em testes de inteligência. Os “resistentes”tem grau mais elevado de controle de execução em tarefas cognitivas e especialmente a capacidade de realocar efetivamente sua atenção. Como jovens adultos, eram menos propensos a suar drogas. [...] Treinar a atenção não melhora apenas o controle da execução; acercou-se em testes de inteligência não verbais também melhoravam, e a melhora era conservada por vários meses. Genes específicos estão envolvidos no controle da atenção. Técnicas de criação os pais também afetam essa capacidade e demonstram uma ligação estreita entre a capacidade das crianças de controlar sua atenção e a capacidade de controlar suas emoções.

Pessoas com a função fiscalizadora do Sistema 2 muito fraca tendem a responder as perguntas com a primeira ideia que lhes vêm à mente e relutam em investir o esforço necessário para checar suas intuições. Indivíduos que de modo pouco crítico seguem suas intuições acerca de problemas também são propensos a aceitar outras sugestões do Sistema 1. Em particular, eles são impulsivos, impacientes e ávidos por receber gratificação imediata.

O Sistema 1 é impulsivo e intuitivo; o Sistema 2 é capaz de raciocínio e é cauteloso, mas ao menos para algumas pessoas ele também é preguiçoso. Reconhecemos diferenças relacionadas entre os indivíduos: algumas pessoas são mais como seu Sistema 2; outras estão mais próximas do Sistema 1.

O que torna algumas pessoas mais sucetíveis do que outras a vieses de julgamento?

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Daniel Kahneman

Atenção e esforço

O sistema 2 é um personagem secundário que acredita ser o herói. O traço definidor do Sistema 2 é que suas operações são trabalhosas, e uma de suas principais características é a preguiça, uma relutância em investir mais esforço do que o estritamente necessário. Como consequência, os pensamentos e ações que o Sistema 2 acredita ter escolhido são muitas vezes orientados pela figura no centro da história, o Sistema 1. Entretanto, há tarefas vitais que apenas o Sistema 2 pode realizar, pois elas exigem o esforço e ações de autocontrole em que as intuições e impulsos do Sistema 1 são subjugados. 

Pupila, uma janela para alma; uma indicação visível do esforço mental

O tamanho da pupila varia de acordo com as alterações de exigência das tarefas mentais: sequências mais longas invariavelmente causam dilatações maiores, o pico de tamanho da pupila coincide com o máximo esforço mental. A pupila dilata cerca de 50% de sua área original e a pulsação aumenta em cerca de sete batimentos por minuto. Isso é o mais duro que alguém pode dar. 

A conversação mundana exige pouco ou nenhum esforço. A vida mental é normalmente conduzida ao ritmo de uma caminhada confortável, às vezes interrompida por episódios de corrida leve e em raras ocasiões um tiro frenético. [...] As pessoas, quando ocupadas num tiro mental, podem ficar efetivamente cegas. 

A reação à sobrecarga mental é seletiva e precisa: o Sistema 2 protege a atividade mais importante, de modo que ela recebe a atenção de que precisa; a “capacidade reserva” é alocada segundo a segundo para outras tarefas. 

A sofisticada alocação da atenção tem sido aperfeiçoada por uma longa história evolucionária. Orientação e reação rápidas ante as ameaças mais sérias ou as oportunidades mais promissoras melhoravam a chance de sobrevivência, e essa capacidade certamente não se restringe aos seres humanos. Mesmo nos humanos modernos, o Sistema 1 assume o controle nas emergências e designa prioridade total a ações de autoproteção. Imagine-se no volante de um carro que inesperadamente derrapa numa enorme mancha de óleo. Você vai ver que reagiu à ameaça antes de ficar inteiramente consciente dela. 

À medida que você se especializa numa tarefa, a demanda de energia diminui. Estudos do cérebro revelam que o padrão da atividade associado com uma ação muda à medida que a habilidade aumenta, com menos regiões do cérebro envolvidas. O talento tem efeitos semelhantes. Indivíduos muito inteligentes necessitam menos esforço para resolver os mesmos problemas, como indicado tanto pelo tamanho da pupila, quanto pela atividade cerebral. Uma “lei do menor esforço” se aplica tanto ao esforço cognitivo quanto físico. Essa lei determina que se há vários modos de atingir o mesmo objetivo, as pessoas acabaram por tender ao curso de ação menos exigente. Na economia da ação, esforço é um custo, e a aquisição de habilidade é impulsionada pelo equilíbrio de benefícios e custos. A preguiça é algo profundamente arraigado em nossa natureza. 

O que torna algumas operações cognitivas mais exigentes e trabalhosas que outras? Que resultados devemos adquirir na moeda da atenção? O que o Sistema 2 faz que o Sistema 1 não consegue? 

O esforço é exigido para manter simultaneamente na memória diversas ideias que exigem ações separadas ou que precisam ser combinadas de acordo com uma regra.  – repassar mentalmente a lista de compras quando você entra no supermercado, escolher entre peixe e vitela no restaurante, combinar um resultado surpreendente obtido após um estudo com a informação de que a amostra era pequena, por exemplo. O Sistema 2 é o único que pode seguir regras, comparar objetos com base em diversos atributos e fazer escolhas deliberadas a partir de opções. O automático Sistema 1 não dispõe dessas capacidades. O Sistema 1 detecta relações simples (“eles são todos parecidos”, “o filho é bem mais alto que o pai”) e se sobressai em integrar informação  sobre uma coisa, mas ele não lida com tópicos distintos e múltiplos de uma vez, tampouco é proficiente ao usar informação puramente estatística. O Sistema 1 vai detectar que uma pessoa descrita como “dócil e organizada, com necessidade de ordem e estrutura, e uma paixão pelo detalhe” se assemelha de uma caricatura de bibliotecário, mas combinar essa intuição com o conhecimento sobre o pequeno número de bibliotecários é tarefa que apenas o Sistema 2 consegue realizar – se o Sistema 2 souber como fazer tal coisa, o que é verdadeiro para poucas pessoas.  

Uma capacidade crucial do Sistema 2 é a adoção de “ajustes de tarefa” (“task sets”): ele pode programar a memória para obedecer a uma instrução que passa por cima de reações habituais. [...] Os psicólogos de “controle executivo” para descrever a adoção e o término dos ajustes de tarefa, e os cientistas identificam as principais regiões do cérebro que agem na função executiva. Uma dessas regiões está envolvida sempre que um conflito precisa ser resolvido. Outra é a área pré-frontal do cérebro, uma região que é substancialmente mais desenvolvida em humanos do que em outros primatas, e está envolvida em operações que associamos com a inteligência. 

A capacidade de controlar a atenção não é simplesmente uma questão de inteligência; medidas de eficácia no controle da atenção. 

A pressão do tempo é outra motriz do esforço. [...] Qualquer tarefa exigindo que você mantenha em mente diversas ideias ao mesmo tempo apresenta esse mesmo caráter urgente. A menos que você tenha a boa sorte de possuir uma memória de trabalho de grande capacidade, talvez você seja forcado a dar duro desconfortavelmente. As formas mais laboriosas de trabalho lento são as que exigem que você pense rápido. 

Normalmente evitamos a sobrecarga mental dividindo nossas tarefas em múltiplos passos fáceis, relegando os resultados intermediários à memória de longo prazo ou ao papel, em vez de relegá-los à memória de trabalho, que fica facilmente sobrecarregada. Cobrimos longas distâncias dando tempo ao tempo e conduzindo nossa vida mental pela lei do menor esforço. 

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Daniel Kahneman


Rápido e devagar – duas formas de pensar 

Sinopse da trama 

Vou fazer referência a dois sistemas na mente, o Sistema 1 e o Sistema 2. O Sistema 1 opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário. O Sistema 2 aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos. Operações do Sistema 2 são muitas vezes associadas com a experiência subjetiva de atividade, escolha e concentração. 

Na história que vou contar, os Sistemas 1 e 2 estão ambos ativos sempre que estamos despertos. O Sistema 1 funciona automaticamente e o Sistema 2 está normalmente em um confortável modo de pouco esforço, em que apenas uma fração de sua capacidade está envolvida. O Sistema 1 gera continuamente sugestões para o Sistema 2: impressões, intuições, intenções e sentimentos. Se endossadas pelo Sistema 2, impressões, e intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações voluntárias. Quando tudo funciona suavemente, o que acontece na maior parte do tempo, o Sistema 2 adota as sugestões do Sistema 1 com pouca ou nenhuma modificação. Você realmente acredita em suas impressões e age segundo seus desejos, e tudo bem – normalmente.

Quando o Sistema 1 funciona com dificuldade, ele recorre ao Sistema 2 para fornecer um processamento mais detalhado e específico que talvez solucione o problema do momento. O Sistema 2 é mobilizado quando surge uma questão para a qual o Sistema 1 não oferece uma resposta, como provavelmente acontece quando você se vê diante do problema de multiplicação 17 x 24. Você pode sentir uma sobrecarga de atenção consciente sempre que fica surpreso. O Sistema 2 é ativado quando se detecta um evento que viola o modelo do mundo mantido pelo Sistema 1. Nesse mundo, abajures não pulam, gatos não latem e gorilas não atravessam quadras de basquete. A surpresa desse modo, ativa e orienta sua atenção: você fixa o olhar, e busca em sua memória uma história que dê sentindo ao evento surpreendente.  Ao Sistema 2 também é atribuído o contínuo monitoramento de seu próprio comportamento – o controle que o mantém sendo educado quando está furioso, e alerta quando está dirigindo à noite. O Sistema 2 é mobilizado para aumentar o esforço quando detecta um erro prestes a ser cometido. Lembre-se de uma ocasião em que você quase deixou escapar um comentário ofensivo e observe como se esforçou para recobrar o controle. Em resumo, a maior parte do que você (seu Sistema 2) pensa e faz origina-se de seu Sistema 1, mas o Sistema 2 assume o controle quando as coisas ficam difíceis e normalmente eles tem a última palavra. 

A divisão do trabalho entre o Sistema 1 e o Sistema 2 é altamente eficiente: isso minimiza o esforço e otimiza o desempenho. O arranjo funciona bem na maior parte do tempo porque o Sistema 1 geralmente é muito bom no que faz: seus modelos de situações familiares são preciosos, suas previsões de curto prazo são igualmente preciosas e suas reações iniciais a desafios são rápidas e normalmente apropriadas. O Sistema 1 tem vieses, porém, erros sistemáticos que ele tende a cometer em circunstâncias específicas: ele responde a perguntas mais fáceis do que essa que foi feita, e exibe pouco entendimento de lógica e estatísticas. Uma limitação adicional do Sistema 1 é que ele não pode ser desligado. Se alguém lhe mostra numa tela uma palavra numa língua que você conhece, você a lê – a menos que a sua atenção esteja totalmente concentrada em outro lugar. 

Conflito

O conflito entre uma reação automática e uma intenção de controlá-la é comum em nossa vidas.  Qualquer um está familiarizado com a experiência de tentar não encarar o casal vestido de maneira excêntrica na mesa ao lado em um restaurante. Também sabemos como  é forçar nossa atenção em um livro chato, no qual nos pegamos constantemente voltando ao ponto em que a leitura parou de fazer sentido. Em lugares onde os invernos são muito rigorosos, é comum os motoristas terem a lembrança de seu carro derrapando sem controle no gelo e da luta para seguir instruções bem ensaiadas que exigem o contrário do que você normalmente faria: “Gire o volante no sentido da derrapagem e, haja o que houver, não toque no freio!”E todo ser humano já passou pela experiência de não mandar alguém para o inferno. Uma das tarefas do Sistema 2 é dominar os impulsos do Sistema 1. Em outras palavras, o Sistema 2 é o encarregado do autocontrole. 

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Esther Perel




Ciúme – A faísca de Eros

O monstro de olhos verdes causa muita desgraça, mas a ausência dessa serpente horrorosa indica a presença de um cadáver cujo o nome é Eros.
Minna Antrim

P: Qual o segredo das relações duradouras?
R: A infidelidade. Não o ato em si, mas sua ameaça. Segundo Proust, uma injeção de ciúmes é a única coisa capaz de resgatar uma relação arruinada pelo hábito.
Allain de Botton. Como Proust pode mudar sua vida

Eurípedis, Ovídio, Shakespeare, Tolstói, Proust, Flaubert, Stendhal, D.H. Lawrence, Austen, as irmãs Bronte, Atwood – inúmeros gigantes da literatura mergulharam no tema da infidelidade. No cerne de muitas dessas narrativas está uma das emoções mais complexas, o ciúme – “aquela mistura nauseante de possessividade, desconfiança, raiva e humilhação que pode tragar sua mente e ameaçar sua essência enquanto você mede o rival”, como descreve a antropóloga evolutiva Helen Fisher.

Scheinkman e Werneck se interessam especificamente pelas diferenças culturais na interpretação do ciúme. Segundo elas, “reconhecido no mundo todo como motivação para crimes passionais, o ciúme é definido em certas culturas como uma força destrutiva que precisa ser contida, enquanto em outras é concebido como um companheiro do amor e guardião da monogamia, essencial para proteger a união do casal”.

O ciúme é, nas palavras da historiadora e filósofa italiana Guilia Sissa, uma “fúria erótica”.  [...] Podemos tentar esconder o nosso ciúmes, mas quem o inspira sempre sabe – e às vezes até curte atiçar as brasas para transforma-las em camas enlouquecedoras.  

O ciúme não foi sempre renegado. O sociólogo Gordon Clanton pesquisou matérias sobre o tema em revistas americanas populares durante um período de 45 anos. Até a década de 1970, ele era visto como um sentimento natural, intrínseco ao amor. Não é surpresa que os conselhos sobre o tema fosse dirigidos exclusivamente às mulheres, incentivadas à controlar o ciúme (nelas mesmas) e evitar provocá-lo nos maridos. Depois de 1970, o ciúme caiu em desgraça e passou a ser visto cada vez mais como um vestígio inadequado de um modelo antigo de casamento em que a posse era central (para homens) e a dependência inevitável (para mulheres). Na nova era da livre escolha e igualdade, o ciúme perdeu a legitimidade e virou motivo de vergonha. “Se por livre e espontânea vontade escolhi você como a pessoa certa, abrindo mão de todas as outras, e você me acolheu por livre e espontânea vontade, eu não deveria sentir necessidade de ser possessivo”.

Como Sissa destaca em seu revigorante livro acerca do tema, o ciúme carrega em si um paradoxoprecisamos amar a fim de ter ciúme, mas, se amamos, não deveríamos tê-lo. No entanto, temos mesmo assim. Todo mundo fala mal do ciúmes. Portanto, o vivenciamos como uma paixão inadmissível. Não só somos proibidos de assumir que temos ciúme, como não nos é permitido sentir ciúme. Hoje em dia, Sissa nos adverte, o ciúme é politicamente incorreto.

Embora nosso reequilíbrio social em torno do ciúme tenha sido parte de uma mudança importante para além do privilégio patriarcal, talvez ele tenha ido longe demais. Nossos ideais culturais às vezes são impacientes demais com nossas inseguranças humanas. Podem não conseguir dar conta da vulnerabilidade inerente ao amor e da necessidade que o coração tem de se defender. Quando botamos todas as nossas esperanças em uma pessoa, nossa dependência aumenta. Todo casal vive à sombra do terceiro.

A pessoa ciumenta sabe que não é um personagem simpático e que seu tormento provavelmente atrairá mais críticas que compaixão. Como resultado, o que Proust chamou de “o demônio não pode ser exorcizado” simplesmente saiu à caça de um vocabulário socialmente aceitável. “Trauma”, “pensamentos intrusivos”, “flashbacks”, “obsessão”, “vigilância” e “problemas de apego” são o vocabulário moderno do amor traído. Esse arcabouço do transtorno de estresse pós-traumático legitima nosso sofrimento romântico, mas também o despe da essência romântica.

Reconhecer o ciúme é admitir amor, competição e comparação – todos sentimentos que demonstram vulnerabilidade. E mais ainda quando se expõe a quem magoou.

O monstro de olhos verdes nos insulta quando estamos mais indefesos e nos põe em contato direto com nossas inseguranças, nosso medo da perda e nossa falta de autoestima. Não é nosso ciúme iludido ou patológico, em que a desconfiança infundada é alimentada mais pelo trauma de infância que por alguma causa atual. É o tipo de ciúme que é intrínseco ao amor e portanto à infidelidade. Estão contido nessa simples palavra um monte de sentimentos e reações intensos, que podem ir do lamento, insegurança e humilhação a possessividade e rivalidade, excitação e encanto, desejo de vingança e desforra, chegando até a violência.

Cá estamos no dilema da possessividade. O desejo de ter e controlar é ao mesmo tempo parte intrínseca da fome do amor e também uma perversão do amor. Por um lado, queremos instigar o parceiro a voltar para nós. Mas não queremos que volte só por obrigação: queremos nos sentir escolhidos. E sabemos que o amor que é privado de liberdade e capitulação voluntária não é amor. Porém, é assustador criar espaço para essa liberdade.   



Fotografia: Nan Goldin

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Esther Perel





Lojinha de horrores: alguns casos provocam mais dor do que outros?

Coisa estranha que tais palavras, “umas duas ou três vezes”, nada mais que palavras, palavras pronunciadas no ar, à distância, possam assim dilacerar o coração como se o tocassem de verdade, possam fazer adoecer, como um veneno que se ingerisse.
Marcel Proust, No caminho de Swann

Alguns casos são piores que outros? Alguns tipos de infidelidade magoam menos e se mostram mais fáceis no tocante à recuperação?

É quase irresistível tentar organizar uma hierarquia da violação, no entanto, por mais convidativo que seja criar uma gradação de traições, não é de grande valia medir a legitimidade da reação pela magnitude da afronta. [...] O impacto do caso não é necessariamente proporcional à sua duração ou seriedade.

Na intrincada história da infidelidade, todas as nuances interessam. A pesquisadora Brené Brown explica que, depois de um acontecimento chocante ou traumático, “nossas emoções fazem a primeira tentativa de entender a dor”. Certas coisas despertam o sofrimento (“Ele fez o quê?”) e outras se tornam marcadores de alívio (“pelo menos não fez isso”). Algumas são amplificadores – elementos específicos que aumentam o sofrimento – e outras são amortecedores – blindagens protetoras contra a mágoa.

Como a infidelidade vai lhe cair e como você vai reagir tem tanto a ver com suas próprias expectativas, sensibilidades e histórico, como com a notoriedade da conduta do parceiro.  Gênero, cultura, classe, raça e orientação sexual: tudo isso emoldura a experiência da infidelidade e dá forma à dor.

Nossa história familiar é o principal amplificador – casos e outras quebras de confiança com que somos criados ou que sofremos em relações passadas podem nos deixar mais suscetíveis. A infidelidade sempre ocorre dentro de uma rede de conexões, e a história começou muito antes da ofensa crítica. Para alguns, confirma um medo arraigado: “Não é que ele não me ame, é que eu não me sinto amável”. E, para outros, estraçalham a imagem que tinham do parceiro: “Escolhi você porque tinha certeza que não era desse tipo”.

Um dos amortecedores é a forte rede de amigos e familiares, que são pacientes e oferecem um porto seguro para a complexidade da situação. Um senso de identidade bem desenvolvido ou um espiritual ou religiosa também podem mitigar o impacto. A própria qualidade da relação, anterior à crise, sempre tem um grande papel. E, se alguém sente ter alternativas – imóveis, poupança, perspectivas de trabalho, perspectivas de namoro –, isso não só diminui sua vulnerabilidade como também fornece certa margem de manobra, por dentro e por fora. Analisar os pontos dolorosos da traição ajuda a identificar oportunidades para fortalecer esses amortecedores protetivos.

“Por que logo ele?”

Algumas pessoas conseguem exprimir seus sentimentos no mesmo instante. A capacidade de entender as próprias emoções lhes permite reconhecer, nomear, e assumir as especificidades do seu sofrimento. Porém, também encontro pessoas que se fecharam sem jamais identificar seus pontos nevrálgicos emocionais. Elas vivem assombradas por sentimentos sem nome, que não se tornam menos potentes por causa do anonimato.

“Como foi que não percebi?”

É da natureza humana nos agarrarmos ao nosso senso de realidade, resistir ao seu possível abalo mesmo diante de provas irrefutáveis. Eu lhe garanto que “não fazer ideia” não é algo de que deva se envergonhar. Esse tipo de escape não é um ato de idiotismo, mas de autopreservação. Na verdade, é um sofisticado mecanismo de autoproteção conhecido como negação do trauma – uma espécie de autoilusão que utilizamos quando há muita coisa em jogo e temos muito a perder. A mente precisa de coerência, portanto renega as inconsistências que ameaçam a estrutura de nossas vidas. Isso se torna mais marcante quando somos traídos pelas pessoas que nos são mais próximas e das quais mais dependemos – uma prova do esforço que somos capazes de fazer para manter nossas relações, por mais turbulentas que possam ser.

Da desconfiança à certeza

A certeza é cáustica, mas a desconfiança persistente é uma agonia. Quando começamos a desconfiar que nosso amado está nos enganando, viramos escavadores implacáveis, farejando roupas e pistas jogadas com desleixo pelo desejo. Especialistas em sistemas sofisticados de vigilância, monitoramos as menores mudanças no rosto, a indiferença na voz, o cheiro estranho na camisa, o beijo sem graça. Somamos as mínimas incongruências. [...] Mais cedo ou mais tarde, o desejo de saber supera o medo de saber, e começamos a sondar e interrogar.  [...] Às vezes, o tormento corrosivo representado pela desconfiança da fidelidade do parceiro é piorada pela prática cruel do gaslighting. [...] Quando a desconfiança vira certeza, por um instante pode haver alívio, mas logo em seguida vem um novo golpe. O momento de revelação deixa uma cicatriz indelével.   

Segredos, fofocas e conselhos ruins

As pessoas não só descobrem os segredos dos parceiros como, em prol dos filhos, às vezes se tornam partícipes relutantes de engodos.  

Quando o segredo é revelado, é comum a agonia ser reforçada pelo castigo da piedade e da condenação social. “Como é que ela não sabia?”, sussurram. A voz condenatória coletiva vai da crítica suave à responsabilização total da vítima – por “deixar” que acontecesse, por não fazer o suficiente para prevenir, por não perceber o que estava acontecendo, por deixar que a situação se arrastasse por tanto tempo e, é claro, por continuar casada depois do ocorrido. A fofoca sibila por todos os lados.

Um caso pode não só destruir um casamento: ele tem o poder de descosturar toda uma malha social. [...] Para os que são traídos, as feridas específicas são a vergonha e o isolamento. A revelação de um caso pode deixar o parceiro que foi pego de surpresa em um aperto: na hora em que mais precisam dos outros para obter consolo e confirmação, menos capazes se sentem de pedir ajuda. Sem poder recorrer ao apoio de amigos, sentem-se duplamente sós.

“Por que agora?”

Os casos já doem bastante, às vezes o momento é a gota d’água. [...]Quando o momento tem alta significância pessoal, a ênfase é no “como ele(a) foi capaz de fazer isso comigo naquele momento?”. O momento quase se sobrepõe ao o quê.

“Você não pensou em mim?”

Em certas circunstâncias é a premeditação da vida dupla que fere – o grau de planejamento necessário para levar a cabo a sequência calculada de dissimulações. A intencionalidade implica que o parceiro infiel pesou seus desejos e suas consequências e resolveu ir em frente mesmo assim. Além do mais, o investimento substancial de tempo, energia, dinheiro e criatividade indica a motivação consciente de levar adiante as motivações egoístas à custa do companheiro ou da família. [...] Cada passo de premeditação em torno do amante significa um descaso ativo pela pessoa amada.

Casos cuidadosamente premeditados doem, mas a situação oposta também pode doer igualmente. Nessas circunstâncias, trata-se da indiferença da traição ocorrida por acaso. “Você está dizendo isso para eu me sentir melhor? Que você é capaz de me magoar tanto assim por uma coisa sem nenhuma importância?”.

“Será que eu estava só esquentando o lugar do amor da vida dele?”

Uma reviravolta na narrativa da infidelidade que é particularmente sofrida é a reativação de uma paixão antiga. “Por que ela?  Por que a ex? Ela o fez sofrer demais. Seria de se imaginar que ele não quisesse nada com ela. Será que ele me amou de verdade? Apesar dos filhos e de tudo que construímos, será que já fui mesmo o amor da vida dele? Ou será que era ela? Vai ver que eu estava esquentando o lugar do amor da vida dele”.  Ser substituído é sempre duro, mas quando o ex retorna e o novo na verdade é velho, o toque especial é a sensação de que talvez estejamos competindo com o destino.

Dinheiro. Bebês. DSTs. Premeditação. Descuido. Vergonha. Insegurança. Fofoca. Críticas. A pessoa, gênero, tempo, lugar, contexto social específicos. Se esse breve compêndio das histórias de horror do amor nos mostra alguma coisa é que, embora todos os atos de traição tenham características em comum, toda vivência da traição é única. Não fazemos bem a ninguém ao reduzir casos a sexo e mentiras, ignorando os vários outros elementos constitutivos que criam as nuances do suplício e influenciam o caminho que leva à cura.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Robert L. Leahy


Detecte o perigo, transforme o perigo em catástrofe, controle a situação, evite ou escape.

Uma maneira muito comum de se tentar evitar a ansiedade talvez seja evitar a situação como um todo. A crença subjacente é a de que os riscos podem ser eliminados pela recusa de enfrenta-los. A segurança reside da manutenção da ilusão de segurança. [...] Uma consequência dessa regra é a paralisia. Temos medo de andar de avião, por isso nunca fazemos aquela visita importante a alguns familiares. Temos medo de não sermos aceitos para o trabalho que desejamos, por isso nunca nos candidatamos a ele. Alguém com quem não nos damos bem mora em uma rua próxima e, por isso, sempre evitamos passar por ela, mesmo que tenhamos que fazer um caminho mais longo. Quando nossa convicção subjacente é a de que não podemos lidar com qualquer desconforto, nossa vida fica cercada por todas as espécies de limitações, que nos mantém imóveis, passivos e escondidos.

Uma manifestação comum da paralisia que nos acomete é a indecisão. Com frequência, nos recusamos a agir até que tenhamos o que consideramos ser informações suficientes – que, de alguma forma, nunca conseguimos obter. O medo de tomar a decisão “errada” (que em circunstâncias primitivas poderiam significar a morte súbita e violenta) nos impede de tomar qualquer decisão. Quando estamos ansiosos, tentamos evitar completamente os riscos. Acreditamos que o mundo é perigoso, que não seremos capazes de enfrentar as consequências e precisamos de certeza absoluta. E quando estamos ansiosos, acreditamos que se algo não for bem nos arrependeremos para sempre. Imaginamos que nos arrependeremos dos resultados e diremos a nós mesmos: “Bem que eu te avisei!”.

Nossa ansiedade leva a procrastinação. Nosso cérebro primitivo nos diz que não devemos fazer nada até que saibamos que é seguro, até que não mais tenhamos medo. A mensagem persiste, e por isso acreditamos que é importante não agir até que estejamos prontos. Enquanto nos sentirmos ansiosos em relação a uma situação, a adiaremos – seja tal situação declarar o imposto de renda, trabalhar em um projeto que não temos certeza de que controlaremos, ter um conversa sobre um assunto delicado com alguém ou ir ao dentista.  Subjacente a isso está a crença de que as penosas consequências da ação decisiva são maiores do que não fazer nada; de que o caminho “mais seguro” é o de esperar até que a ansiedade vá embora. De todas as nossas ilusões, essa é a que aparece com maior frequência.

E se for tarde demais para evitar uma situação? E se já estivermos imersos nela? Obviamente, a estratégia é a de escapar o mais cedo possível. Novamente, a ligação com as urgências primitivas é clara: retirar-se rapidamente da situação quase sempre foi uma questão de sobrevivência. Nos dias de hoje buscamos uma saída. Atravessamos a rua para escapar de um bando de estranhos. Ligamos para nosso trabalho avisando que estamos doentes no dia de um exame importante. Não enfrentar uma fonte de perigo é um instinto tão profundo e poderoso que muitas vezes supera todas as outras considerações. É claro que quando obedecemos à urgência deixamos de aprender uma lição importante, que é a de que nós de fato temos capacidade de aprender a lidar com as dificuldades. Quando buscamos escapar de tais situações, contudo, jamais levamos esse fator em consideração.


Ao codificar essas “regras” de ansiedade, obviamente simplifiquei muito. Na prática, há muitas sobreposições entre elas, isso para não mencionar muitas situações que elas se misturam com impulsos do senso comum. Contudo, conhecemos todas essas regras, sejamos classificados como pessoas que sofrem de ansiedade ou não. Isso ocorre porque os padrões de pensamento e comportamento que elas representam foram inextricavelmente implantados em nossa psicologia, como espécie. Nossos instintos de proteção – a verdadeira origem dessas regras – não são diferentes do que eram há milhões de anos: Detecte o perigo, transforme o perigo em catástrofe, controle a situação, evite ou escape. A julgar por nosso sucesso como espécie, essas regras provaram ser eficazes durante milhões de anos de pré-história. Todavia, se nós ainda as seguimos cegamente nos dias de hoje – em que os animais selvagens, as tribos hostis, as doenças e a desnutrição não são mais as principais ameaças –, não estamos mais levando em conta nossa sobrevivência. Estamos fazendo exatamente o contrário: tornando-nos confusos, disfuncionais, paralisados e incapazes de um pensamento ou de uma ação eficaz. Estamos usando as regras certas no momento errado. Na verdade, obedecer a essas regras hoje talvez seja a melhor maneira de desenvolver o que a sociedade chama de transtorno de ansiedade. 

Fotografia: James Nachtwey

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Antônio Damásio




A estranha ordem das coisas

Observando a consciência
O estado consciente da mente tem várias características importantes. É acordado, em vez de adormecido. É alerta e concentrado, em vez de sonolento, confuso ou distraído. É orientado para o momento e o lugar. As imagens da mente – sons, imagens visuais, sentimentos, etc. – são formadas de modo apropriado, exibidas com clareza e examináveis. Não o seriam se você estivesse sob a ação de moléculas “psicoativas”, como o álcool e drogas psicodélicas. No teatro de sua mente (o seu teatro cartesiano, por que não?), a cortina está aberta, os atores no palco, falando e movendo-se, as luzes acesas, os efeitos sonoros ligados e – eis a parte crucial da montagem – há uma plateia: VOCÊ. Não preciso que você veja a si mesmo; você simplesmente percebe ou sente que, defronte ao que se passa no palco, está sentado um VOCÊ, o sujeito-plateia do espetáculo, habitando um espaço de frente para a indelével quarta parede do palco. Sinto dizer, mas coisas ainda mais esquisitas aguardam, pois, às vezes, você pode até sentir que outra parte de você está assistindo a VOCÊ enquanto você assiste ao espetáculo.

A essa altura, alguns leitores devem achar que estou caindo em todo tipo de armadilha ao sugerir essa torrente de metáforas, dizendo que existe um local real no cérebro que poderia fazer as vezes de teatro e ser um foro para a experiência mental. Fiquem tranquilos, pois não é nada disso. E também não penso que existe um minúsculo eu ou você dentro dos respectivos cérebros, passando pela experiência. Não há homúnculo, nem a regressão infinita da lenda filosófica. O fato inegável, porém, é que tudo isso acontece como se existisse um teatro ou uma enorme tela de cinema, e como se existisse um eu ou um você na plateia. É perfeitamente aceitável chamar isso de ilusão, desde que reconheçamos que existem firmes processos biológicos por trás disso e que podemos usá-los para esboçar uma explicação para o fenômeno. Não podemos meramente desconsiderá-la, como se ilusões não tivessem importância. Nosso organismo, especificamente nosso sistema nervoso e o corpo que interagem com ele, não requer teatros ou expectadores de verdade. Serve-se de outros truques da parceria corpo-cérebro para produzir os mesmos resultados.

O que mais você observa como sujeito da sua mente consciente? Talvez o fato de ela não ser um monólito, por exemplo. Ela é composta. Possui partes – bem integradas, por sinal, tanto é que algumas depende de outras, mas ainda assim são partes. Algumas podem destacar-se mais do que outras, dependendo de como você faz a observação. A parte da sua mente consciente que se destaca mais e tende a dominar os procedimentos está relacionada a imagens de muitos tipos sensitivos: visuais, auditivas, táteis, gustativas e olfatórias. A maioria dessas imagens corresponde a objetos e eventos do mundo à sua volta. São mais ou menos integradas em conjuntos, e sua respectiva abundância tem relação com as atividades que ocupam você no momento. Se estiver ouvindo música, provavelmente dominarão imagens sonoras. Se estiver almoçando, imagens gustativas e olfatórias serão especialmente destacadas. Algumas das imagens formam narrativas, ou partes de narrativas. Entremeadas às imagens relacionadas à percepção corrente, pode haver imagens do passado sendo reconstruídas, convocadas no momento porque são pertinentes aos procedimentos correntes. Elas são partes de memórias de objetos, ações ou eventos, embutidas em narrativas antigas ou armazenadas como itens isolados. Sua mente consciente também inclui esquemas que ligam imagens, ou abstrações ensejadas por elas. Dependendo do estilo mental do indivíduo, ele pode perceber esses esquemas e abstrações com mais ou menos clareza, e com isso quero dizer, por exemplo, que ele pode construir, como em um espelho, e de maneira confusa, imagens secundárias de movimentos de coisas no espaço, ou relações espaciais entre objetos.

Símbolos passam por esse superfilme no cérebro, e alguns deles compõe uma trilha verbal que traduz objetos e ações em palavras e sentenças. Para a maioria dos mortais, a trilha verbal é em grande parte auditiva e não precisa ser totalmente abrangente – nem tudo é traduzido, a nossa mente não gera legendas para cada linha do diálogo ou descrições para cada cena. É uma trilha verbal para a demanda do momento, que traduz imagens vindas não só de fora, mas também, necessariamente, do interior, como já vimos.

A presença dessa trila verbal é uma das justificativas remanescentes, e agora incontestável, para uma certa excepcionalidade humana. Os seres não humanos, por mais respeitáveis que sejam, não traduzem suas imagens em palavras, mesmo quando suas mentes fazem uma porção de coisas engenhosas que a nossa pode ou não fazer.

A trilha verbal é corresponsável pela característica narradora da mente humana e pode muito bem ser, para a maioria de nós, sua principal organizadora. De modos não verbais, quase cinemáticos, porém sem palavras, contamos incessantemente histórias a nós mesmos, em particular, e a outros. Chegamos até a novos significados, superiores aos dos componentes separados da história, em virtude de tanta narração.

E quanto aos outros componentes da mente consciente? Ora, eles são imagens do próprio organismo. Um conjunto é composto de imagens do mundo interno antigo, o mundo da química e das vísceras, que sustenta os sentimentos, as imagens dotadas de valência que são tão distintivas em qualquer mente. Os sentimentos, que se originam no estado homeostático básico e em tantas respostas emotivas geradas pelas próprias imagens do mundo externo, são grandes contribuintes da nossa mente consciente. Fornecem o elemento do qualia que é parte das discussões tradicionais sobre o problema da consciência. Finalmente, existem imagens do mundo interno novo, o mundo da estrutura musculoesquelética e seus portais sensitivos. As imagens da estrutura esquelética formam um fantasma do corpo no qual todas as imagens podem ser situadas e afixadas. O resultado de todos esses processos imagiadores coordenados não é simplesmente uma grande peça, sinfonia ou filme. É um espetáculo multimídia épico.

Quantos desses componentes da mente dominam nossa vida mental, isto é, comandam a atenção, depende de numerosos fatores: idade, temperamento, cultura, ocasião, estilo mental. Mas todos nós tendemos a dar mais ou menos rédeas aos aspectos do mundo externo ou ao mundo do afeto.

Em circunstâncias normais, a intensidade da função subjetividade varia, assim como varia o grau da integração de imagens. Quando mergulhamos arrebatados em uma narrativa, ou mesmo quando a criamos de uma forma diferente, a função subjetividade pode ser extremamente sutil. Ela ainda está lá, prontamente disponível, presente para assumir de imediato seu papel central.

Quando nos absorvemos no que está acontecendo com os personagens de um filme, por exemplo, não necessariamente estamos pensando em nós mesmos e relacionando nosso prazer com a presença do sujeito. Para que alocar esforço adicional de processamento ao “eu”? A presença estável de um “eu” de referência já basta. No entanto, repare que se, em dado momento, uma palavra ou acontecimento no filme associa-se à sua experiência passada específica e provoca uma reação – um pensamento, uma resposta emotiva e um sentimento específico –, nosso “sujeito” ganha destaque; momentaneamente, coexperienciamos o material visto na tela e a nossa própria presença, agora mais proeminente na mente consciente. Ainda é mais provável que isso ocorra quando temos o total controle do tempo necessário para adquirir o material. É isso que acontece quando lemos um romance ou até um texto de não ficção absorvente. Podemos dar o ritmo que quisermos à aquisição e tradução mental. Algo que não ocorre na experiência de um filme, a menos que abandonemos nossa postura de espectador e nos distraiamos do que a tela mostra. A experiência clássica de um filme, como nos casos da música e da realidade, impõe seu tempo de aquisição. Se quiser ser livre de verdade, escolha a literatura.

Finalmente, preciso salientar que as imagens do interior cumprem um duplo dever. De um lado, elas contribuem para o show multimídia da consciência: podem ser observadas como parte do espetáculo da consciência; de outro, para a construção de sentimentos, e com isso, ajudam na geração da própria subjetividade, a propriedade da consciência que nos permite ser espectadores. Isso pode parecer confuso, e até paradoxal de início, mas não é. Os processos são encaixados. Sentimentos fornecem o elemento dos qualia incluído na subjetividade. Por sua vez, a subjetividade permite que os sentimentos sejam examinados como objetos específicos na experiência consciente. O aparente paradoxo sublinha o fato de que não podemos discutir a fisiologia da consciência sem fazer referência a sentimentos e vice-versa.