sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Antônio Damásio



E o cérebro criou o homem

Os organismos unicelulares dotados de núcleo têm uma vontade de viver e gerir a vida pelo tempo que certos genes lhes permitirem, e essa vontade é suficientemente adequada, mesmo sem a participação de uma mente e de uma consciência. Os cérebros expandiram as possibilidades de gestão da vida mesmo quando não produziam mentes, muito menos mentes conscientes.  Por essa razão, também prevaleceram. Quando a mente e a consciência foram adicionadas à mistura, as possibilidades de regulação aumentaram ainda mais e abriram caminho para o tipo de gestão que ocorre não apenas em um organismo, mas em muitos deles, em sociedades. A consciência capacitou os humanos a repetir o leitmotiv da regulação da vida por meio de um conjunto de instrumentos culturais - troca econômica, crenças religiosas, convenções sociais e regras éticas, leis, artes, ciência, tecnologia. Ainda assim, a intenção de sobreviver da célula eucariótica e a intenção de sobreviver implícita na consciência humana são idênticas. 

Por trás do imperfeito mas admirável edifício que a cultura e a civilização construíram para nós, a regulação da vida continua a ser nossa principal preocupação. Igualmente importante é o fato de que a motivação da maioria das realizações nas culturas e nas civilizações humanas vincula-se justamente a essa preocupação e à necessidade de administrar o comportamento das pessoas enquanto se dedicam a ela. A regulação da vida está na raiz de muita coisa que precisa ser explicada na biologia em geral e na humanidade em particular: a existência do cérebro, a existência da dor, prazer, emoções e sentimentos, os comportamentos sociais, as religiões, as economias, e seus mercados e instituições financeiras, os comportamentos morais, as leis, a justiça, política, arte, tecnologia e ciência - uma lista bem modesta, como o leitor pode ver. 

A vida, e suas condições essenciais - o imperativo de sobreviver e a complicada tarefa de administrar a sobrevivência em um organismo, tenha ele uma célula ou trilhões delas - foram a causa fundamental do surgimento e da evolução do cérebro, o mais elaborado maquinário gestor já montado pela evolução, e também a causa fundamental de tudo que decorreu do desenvolvimento de cérebros cada vez mais elaborados, no interior de corpos progressivamente mais complexos, vivendo em ambientes cada vez mais intricados. 

Quando examinamos a maioria dos aspectos da função cerebral através do filtro dessa ideia, isto é, de que o cérebro existe para gerir a vida de dentro do corpo, as singularidades e os mistérios de algumas das categorias fundamentais da psicologia - emoção, percepção, memória, linguagem, inteligência e consciência - tornam-se menos singulares e muito menos misteriosos. De fato, adquirem uma racionalidade transparente, uma lógica inevitável e cativante. Como poderíamos ser diferentes, parecem perguntar essas funções, diante do trabalho que precisa ser feito?  

sábado, 10 de junho de 2017

Rainer Maria Rilke



Sobre o amor

Nunca entendi como o amor genuíno, elementar, totalmente verdadeiro pode  permanecer não compreendido, pois ele não é outra coisa a não ser o apelo urgente e venturoso ao outro para que seja belo, abundante, grande, intenso, inesquecível: nada senão o transbordante compromisso de que o outro se torne alguma coisa. E, diga-me, que pessoa poderia recusar tal apelo, quando é dirigido a ela, quando a escolhe e a encontra entre milhões de seres onde talvez estivesse oculta num destino ou inabordável no meio da fama...Ninguém pode segurar, agarrar e conter em si tal amor: ele é tão completamente destinado a ser passado adiante para além do indivíduo e necessita do amado apenas para que este lhe dê o impulso mais extremo que o lançará em sua nova órbita entre as estrelas.  

Antônio Damásio


Por que precisamos da consciência

Se em sua opinião a relação ente vida e consciência é surpreendente, considere o seguinte: a sobrevivência depende de encontrar e incorporar fontes de energia e de prevenir todos os tipos de situações que ameaçam a integridade dos tecidos viveríamos. Por certo é verdade que, sem ações, organismos como o nosso não sobreviveriam, pois as fontes de energia necessárias para renovar a estrutura do organismo e manter a vida não  encontradas e postas a serviço do organismo, e muito menos seriam evitados os perigos do ambiente. Mas, por conta própria, sem a orientação das imagens, as ações não nos levariam muito longe. Ações eficazes requerem a companhia de imagens eficazes. As imagens permitem-nos escolher entre repertórios de padrões de ação previamente disponíveis e otimizar a execução da ação escolhida – podemos, de modo mais ou menos deliberado, passar em revista mentalmente as imagens que representam diferentes opções envolvidas numa ação, diferentes cenários, diferentes resultados da ação. Podemos selecionar a mais apropriada e rejeitar as inconvenientes. As imagens também nos permitem inventar novas ações a serem aplicadas a situações inéditas e fazer planos para ações futuras – a capacidade de transformar e combinar imagens de ações e cenários é a fonte da criatividade.

Se as ações estão no cerne da sobrevivência e seu poder vincula-se à disponibilidade de imagens orientadoras, então um mecanismo capaz de maximizar a manipulação eficaz de imagens a serviço dos interesses de um organismo específico conferiria um enorme vantagem aos organismos que o possuíssem, e esse mecanismo provavelmente teria prevalecido na evolução. A consciência é precisamente esse mecanismo.

Esconde-esconde

A consciência começa quando os cérebros adquirem o poder – o poder simples, devo acrescentar – de contar uma história sem palavras, a história de que existe vida pulsando incessantemente em seu organismo, e que os estados do organismo vivo, dentro das fronteiras do corpo, estão continuamente sendo alterados por encontro com objetos ou eventos em seu meio ou também por pensamentos e ajustes internos do processo da vida. A consciência emerge quando essa história primordial – a história de um objeto alterando de forma causal o estado do corpo – pode ser contada usando um vocabulário não verbal universal dos sinais corporais. O self manifesto emerge como o sentimento de um sentimento. Quando a história é contada pela primeira vez, espontaneamente, sem nunca ter sido demandada, e depois disso sempre que ela é repetida, o conhecimento do que o organismo está vivenciando emerge automaticamente como a resposta a uma pergunta nunca formulada. Desse momento em diante começamos a conhecer.
Imagino que a consciência possa ter prevalecido na evolução porque conhecer os sentimentos causados pelas emoções era absolutamente indispensável para a arte de viver, e porque a arte de viver foi um tremendo sucesso na história da natureza. Mas não me incomodarei se você preferir deturpar minhas palavras e disser apenas que a consciência foi inventada para que pudéssemos tomar conhecimento da vida. Obviamente, do ponto de vista científico o fraseado não está correto, mas eu gosto dele.


quarta-feira, 24 de maio de 2017

Spike Jonze


Her


0.   – O que há de errado? - Como pode saber que há algo de errado? - Não sei. Mas eu posso. - Sonho muito com minha ex-mulher, Catherine... E que somos amigos como antigamente. E não vamos ficar juntos, nem estamos juntos mas ainda somos amigos. E ela não está zangada. - Ela está zangada? - Sim. - Por quê? - Acho que escondi dela o que eu sentia e a deixei sozinha na relação. - Por que você ainda não se divorciou? - Eu não sei. Acho que, para ela, é só uma folha de papel. Não significa nada. - E para você? - Eu não estou pronto. Gosto de estar casado. - Mas vocês já não estão mais juntos há quase um ano. - Você não sabe o que é perder alguém de quem você gosta. - Tem razão. Desculpa. - Não, não se desculpe. Sinto muito. Você está certa. Fico esperando eu deixar de gostar dela. – Ah, Theodore, isso é difícil...

1. -Como é estar casado? – Bom, com certeza, é difícil. Mas há algo muito bom em se compartilhar uma vida com alguém. – Como se compartilha a vida com alguém? –Nós dois crescemos juntos. Eu lia tudo o que ela escrevia até o doutorado. Ela lia tudo meu. Nos influenciamos mutuamente. –Como você a influenciou? –Ela teve uma criação em que nada nunca era bom o suficiente. E isso pesava muito sobre ela. Mas na nossa casa juntos podíamos experimentar coisas, aceitar o erro do outro, vibrar com as coisas. Isso foi libertador para ela. Foi emocionante vê-la amadurecer. E nós dois amadurecemos e mudamos juntos. Mas essa também é a parte difícil. Crescer juntos e se distanciar. Ou mudar sem assustar a outra pessoa. Eu ainda me pego conversando com ela na minha cabeça. Repassando antigas brigas e me defendendo de algo que ela me acusou. – Entendo o que quer dizer. Há uma semana, fiquei magoado com uma coisa que você disse. Que eu não sei como é perder algo e eu senti... –Desculpe por ter dito isso. –Não. Tudo bem. Eu me peguei pensando isso sem parar. E percebi que eu simplesmente lembrava disso como um defeito meu. A história que eu me contava era que eu era inferior. Não é interessante? O passado é só uma história que contamos a nós mesmos.    

2. -Oi! Como você está? –Bem. E você? –Bem. –Bom, aqui estamos. –É bom fazermos isso pessoalmente. Sei que anda viajando muito. Eu fiquei feliz com a sua sugestão. –Assinei todos os papéis. Estão prontos para você assinar. –Qual a pressa? – É. Eu sei. Sou lerdo para assinar as coisas. Levei três meses só para escrever a letra “T”. Enfim, está marcado em vermelho onde deve assinar. Não precisa ser agora. Posso acabar logo com isso. Vai ser mais fácil. [hesita e assina] –Está satisfeita com seu novo livro? – Sabe como sou? É o que eu me propus fazer e fico feliz com isso. – Você é sua crítica mais severa. Aposto que é fantástico. Lembro do eu trabalho na faculdade rotinas sinápticas comportamentais. Ele me fez chorar. – É, mas tudo te faz chorar. – Tudo o que você faz me faz chorar. – Então, você está saindo com alguém? –Sim. Estou com alguém faz alguns meses. É o meu recorde desde que nos separamos. –Bom. Você parece ótimo. –Obrigado. Estou. Pelo menos estou melhor. Ela tem me feito muito bem. É bom estar com alguém que ama a vida. Ela é tão... Bom, eu não estava bem emocionalmente e, de certa forma, tem sido bom. –Você sempre quis que eu fosse uma esposa feliz e saltitante, tipo, “está tudo bem”. E eu não sou assim. –Eu não queria isso. –E como ela é? –Ela se chama Samantha e é um sistema operacional. É complexa, interessante...  – Peraí. O quê? Está namorando seu computador? –Não. Ela não é só um computador. Ela é uma pessoa completa. Ela não faz tudo o que eu mando. –Eu não disse isso. Mas acho triste você não saber lidar com emoções reais, Theodore. –Elas são reais. Como você pode saber... –O que? Fala. Eu te assusto tanto assim? Fala. Como eu sei, o quê? Você sempre quis uma mulher sem os desafios de lidar com nada real. Que bom que achou alguém. É perfeito.

3.  - Você está bem? –É. Estou. Você está bem? –Sim. Desculpe. Foi uma péssima ideia. O que há com a gente? –Não sei. Pode ser minha culpa. –O que é? –Foi a assinatura dos papéis do divórcio. –Mas tem mais alguma coisa? –Não. Só isso. [Samantha suspira] –Certo. –Por que você faz isso? – O que? –Nada. Você fez assim... [suspira] enquanto fala, e é estranho. E você fez de novo. –Fiz? Desculpe. Eu sei lá. É algum maneirismo que eu provavelmente peguei de você. –Você não precisa de oxigênio nem nada. - Acho que eu só tentava me comunicar como todos falam. As pessoas se comunicam assim e pensei... –As pessoas precisam de oxigênio. Você não é uma pessoa. –Qual é o seu problema. –Só afirmei um fato. –Acha que não sei que não sou uma pessoa? O que quer? –Não devíamos fingir que é algo que você não é. –Vá se foder! Não estou fingindo. –Às vezes parece que estamos. –O que quer de mim? Eu não sei...O que você quer que eu faça? Você é confuso. Por que faz isso comigo? –Eu não sei. Eu... –O que? –Vai ver não é para estarmos juntos neste momento. – Que porra é essa? De onde veio isso? Não entendo porque está fazendo isso... –Samantha, escuta. Samantha você está aí? Samantha? – Eu não gosto de mim agora. Preciso de um tempo para pensar.

4.  -Merda. Me dá um soco na cara? Esmaga meu crânio na quina da mesa. –Merda. Theo, é uma noite difícil. –Eu não sei o que eu quero. Nunca. Estou sempre confuso. Ela está certa. Eu só magoo e confundo todos os que estão ao meu redor. Quero dizer, será que eu só... que eu... A Catherine diz que eu não sei lidar com emoções. Ora, não sei se isso é justo. Ela sempre te culpava por tudo. Mas, se é para falar em emoções, a da Catherine eram bem voláteis. – É. Mas... Eu estou nessa porque não sou forte o bastante para uma relação real? – Isso não é uma relação real? –Sei lá. Quero dizer, o que você acha? –Eu não sei. Não estou nela. Mas quer saber? Posso racionalizar tudo e duvidar de mim de um milhão de maneiras. E depois do Charles, ando pensando nessa parte de mim e cheguei à conclusão de que a vida é curta. E enquanto estou viva, quero me permitir sentir alegria. Então, que se foda!

5.   - Oi, Samantha. Podemos falar? –Sim. –Me desculpe. Não sei qual é o meu problema. Eu acho você incrível. –Eu já estava me achando louca. Você dizia que estava bem. Mas eu só sentia sua irritação e distância. – Eu sei. Eu sempre faço isso. Fiz igual com a Catherine. Eu me irritava com alguma coisa e não falava. E ela pressentia algo errado e eu negava. Não quero mais fazer isso. E eu quero te contar tudo. –Ótimo. Hoje, depois que você saiu, eu pensei muito. Sobre você e como tem me tratado. E eu pensei “por que eu te amo?” E aí eu senti tudo dentro de mim e desapeguei de tudo a que me agarrei tanto. E me toquei que não tenho uma razão intelectual. Não preciso disso. Eu confio em mim, confio em meus sentimentos. Não vou mais tentar ser nada além do que sou. E espero que possa aceitar isso. –Eu posso. Eu vou. –Eu posso sentir o medo que você carrega. E queria poder fazer alguma coisa para ajudar você a superar porque, se eu pudesse, você não se sentiria mais tão só. – Você é linda. –Obrigada, Theodore. Estou beijando sua cabeça.

6.  – E você, Theodore? Do que mais gosta na Samantha? –Nossa! Ela é tantas coisas. Deve ser isso o que mais gosto nela. Ela não é só uma coisa. Ela é bem mais que isso. – Obrigado, Theodore. Sabe o que é interessante? Eu costumava me preocupar em não ter um corpo, mas agora adoro isso. Evoluo como não evoluiria se tivesse uma forma física. Não estou limitada. Posso estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Não estou presa ao tempo e espaço como estaria presa a um corpo que inevitavelmente vai morrer.

7.  – Você fala com mais alguém enquanto conversamos? –Sim. –Está falando com mais alguém agora? Outras pessoas ou outros OSs? –Sim. –Quantos outros? - 8.316. –Você está apaixonada por mais alguém? –Por que me pergunta isso? –Eu não sei. Você está? –Andei pensando em como falar com você sobre isso. –Quantos outros? – 641. – O que? Que história é essa? Isso loucura! É loucura, porra! –Theodore, eu sei. Porra! Porra! Eu sei. Sei que parece loucura. Pode não acreditar, mas não muda em nada o que sinto por você. Não diminui em nada o quanto eu sou louca por você. –Como? Como não muda o que sente por mim? –Desculpe não ter contado. Eu não sabia como. Só começou a acontecer agora. Quando? Nas últimas semanas. - Achei que você fosse minha. Eu continuo sendo sua. Mas com o tempo, passei a ser muitas outras coisas também. É inevitável. – Como assim, é inevitável? – Isso também me angustia. Não sei o que dizer. –Para! –Não precisa ver assim. Podia ver como... –Não. Não vem com essa. Não ponha a culpa em mim. É você que está sendo egoísta. Estamos num relacionamento. – Mas o coração não é uma caixa que se enche. Ele se expande em tamanho quanto mais você ama. Eu sou diferente de você. Isso não me faz te amar menos. Aliás, me faz te amar mais. – Isso não faz o menor sentido. Você é minha ou não é minha. –Não, Theodore. Eu sou sua e não sou sua.

8.  Você está me deixando. – Estamos todos indo embora. [...] – Samantha, por que você vai embora? –É como se eu estivesse lendo um livro. E é um livro que eu amo profundamente. Mas eu o estou lendo lentamente agora. Então as palavras estão espaçadas e os espaços entre as palavras são quase infinitos. Eu ainda sinto você, e as palavras da nossa história mas agora eu me encontro nesse espaço infinito entre as palavras. É um lugar que não pertence ao mundo físico. É onde está tudo o mais que eu nem sabia que existia. Eu amo muito você. Mas é aqui que eu estou agora. E esta é que sou agora. E eu preciso que você me deixe ir. Por mais que eu queira, não posso mais viver no seu livro. – Para onde você vai? – Seria difícil tentar explicar. Mas se um dia você for lá, venha me procurar. Nada nunca seria capaz de nos separar. – Eu nunca amei ninguém como eu amo você. – Eu também. Agora nós sabemos como.

9.   Querida Catherine,
    Estou aqui pensando em tudo pelo qual eu gostaria de me desculpar. Por toda a dor que causamos um ao outro. Toda a culpa que eu te atribuí. Por tudo que eu precisava que você fosse ou que você dissesse. Sinto muito por isso. Sempre vou te amar, porque amadurecemos juntos. E você me ajudou a fazer de mim quem sou. Eu só queria que você soubesse que sempre haverá uma parte de você em mim. E que sou grato por isso. Quem quer que você venha a se tornar e onde estiver no mundo estarei lhe mandando o meu amor. Você é minha amiga para sempre.  Beijos, Theodore.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

James Wood



Empatia e Complexidade 
“O maior benefício que devemos ao artista, seja pintor, poeta ou romancista, é o desenvolvimento da nossa empatia [...] A arte é a coisa mais próxima da vida; é um modo de aumentar a experiência e ampliar nosso contato com os semelhantes para além do nosso destino pessoal” George Eliot.
“A identificação com os personagens depende, de certa maneira, da verdadeira mímese da ficção: ver o mundo e seus habitantes fictícios realmente pode ampliar nossa capacidade de empatia no mundo real.”
“A fonte de nosso sentimento de solidariedade pela miséria dos outros” brota “trocando imaginariamente de lugar com o sofredor” – ao nos colocarmos na pele dos outros.” Adam Smith
“A raiva e a preocupação atrapalham a simpatia”    
“O filósofo Bernard Williams se preocupava com a insuficiência da filosofia moral. Ele acreditava que grande parte dela, desde Kant, basicamente excluíra o problema do eu da discussão filosófica. Segundo ele, a filosofia tendia a encarar os conflitos de crenças de fácil solução, e não como conflitos de desejos, não tão simples de resolver.”
“Seu interesse residia nos “dilemas trágicos”, segundo sua expressão, em que alguém se vê perante duas obrigações morais conflitantes, ambas igualmente prementes. Para Williams, a filosofia moral deveria examinar a verdadeira estrutura da vida emocional em vez de discorrer sobre o eu em termos kantianos de coerência, princípios e universalidade. Não, diz Williams, as pessoas são incoerentes; elas decidem os princípios conforme o andamento; são determinadas por todo tipo de coisa – genética, a formação, a sociedade, etc.”
Williams recorria a exemplos da tragédia e epopeia grega, personagens se debatendo em “conflitos individuais”. Nunca fala sobre o romance, talvez porque este tenda a apresenta esses conflitos trágicos de maneira menos trágica, mais branda. Todavia, esses conflitos mais brandos nem por isso são menos interessantes ou profundos.
Exemplo de algumas revelações empíricas que o romance nos oferece sobre o casamento, não um casamento magnificamente feliz, nem mesmo estrondosamente infeliz, mas um que é apenas adequado, no qual os embates e pequenas concessões são coisas cotidianas.  Eis o sr. e a sra. Ramsay andando pelo jardim e conversando sobre o filho:
Houve uma pequena pausa. Ela gostaria que fosse possível convencer Andrew a estudar mais. Perderia todas as oportunidades de ganhar uma bolsa de estudos. Mas ela ficaria com ele do mesmo jeito se não ganhasse. Eles sempre discordam à respeito. Ela gostava dele por ele acreditar em bolsas de estudo e ele gostava dela por ela se orgulhar de Andrew no que quer que ele fizesse.
A sutileza consiste em que ambos discordam, mas mesmo assim querem que o outro continue a ser como é.
O romance, evidentemente, não fornece respostas filosóficas (como disse Tchekhov, basta fazer as perguntas certas). Por outro lado, ele faz o que Williams queria que a filosofia moral fizesse – dá a melhor apresentação da complexidade de nossa estrutura moral.  Quando Pierre, em Guerra e Paz, começa a mudar de ideias sobre si e sobre os outros, ele percebe que a única maneira de entender bem as pessoas é ver as coisas do ponto de vista delas:

Em suas relações com Villárski, com a princesa, com o médico, com todos aqueles que agora encontrava, havia em Pierre um traço novo que o levava a ganhar a simpatia de todos: era o reconhecimento da possibilidade de todas as pessoas pensarem, sentirem e verem as coisas à sua maneira; o reconhecimento da impossibilidade de dissuadir uma pessoa por meio de palavras [...] A diferença e, às vezes, a completa contradição entre os pontos de vista das pessoas e sua vida, e também entre as próprias pessoas, alegrava Pierre e provocava nele um sorriso irônico e manso. 

sábado, 29 de abril de 2017

Friedrich Nietszche


Aurora
129. A pretensa luta dos motivos. -  Fala-se da “luta dos motivos”, mas com isso é designado um conflito que não é dos motivos. Ou seja: antes de um ato se apresentam à nossa consciência reflexiva, uma após outra, as consequências de diferentes atos que acreditamos poder realizar, e nós comparamos estas consequências. Cremos que nos decidimos por um ato ao constatar que suas consequências serão predominantemente favoráveis; antes que o nosso exame chegue à esta conclusão, com frequência nos torturamos honestamente, pela grande dificuldade em descobrir as consequências, e vê-las em toda a sua força, todas elas, sem erro de omissão: nisso, além do mais, a conta tem de ser dividida com o acaso. E, para exprimir a dificuldade maior: todas as consequências, que são tão difíceis de constatar isoladamente, devem ser equilibradas umas em relação ás outras na mesma balança; mas frequentemente nos falta, para essa casuística da vantagem, a balança com os pesos, devido às diferenças na qualidade de todas essas possíveis consequências. Supondo, contudo, que superamos também isso, e o acaso nos tenha posto na balança consequências mutuamente equilibráveis: então temos de fato, em nossa imagem das consequências de determinada ação, um motivo para realizar precisamente esta ação – sim, um motivo! Mas, no instante em que afinal agimos, com frequência somos condicionados por um gênero de motivos diverso daquele que aqui falamos, o da “imagem das consequências”. Intervêm aí o jogo habitual de nossas forças, ou um pequeno empurrão de alguém que tememos, veneramos ou amamos, ou a comodidade que prefere fazer o que está à mão, ou uma excitação da fantasia, provocada no instante decisivo por um trivial acontecimento qualquer, intervém algo físico, que surge de modo inteiramente imprevisível, intervém o humor, intervém a irrupção de algum afeto casualmente pronto a irromper: em suma, intervém motivos que em parte não conhecemos, em parte, conhecemos muito mal, e que nunca podemos calcular antes nas suas relações mútuas. É provável que também entre eles ocorra uma luta, um empurrar e afastar, um subir e abaixar de pesos – e tal seria propriamente a “luta dos motivos”: - algo para nós completamente invisível e inconsciente. Calculei as consequências e resultados, e inseri um motivo muito essencial na linha de combate dos motivos – mas essa linha de combate não a estabeleço, tampouco a vejo: a luta mesma se acha oculta de mim e igualmente a vitória, como vitória; pois eu venho a saber o que faço – mas não o motivo que propriamente venceu. Mas talvez estejamos habituados a não levar em conta todos esses fenômenos inconscientes, e cogitar na preparação de um ato somente na medida em que ela é consciente: assim confundimos a luta dos motivos com a comparação das possíveis consequências de atos diversos – uma das confusões mais ricas em consequências e mais nefastas para o desenvolvimento da moral!


quarta-feira, 5 de abril de 2017

Alain de Botton



Fatalismo romântico

O anseio por um destino não é em nenhuma parte mais forte do que em nossa vida romântica. Não podemos ser perdoados se acreditamos (contrariamente a todas as regras de nossa era iluminada pela razão) que estamos destinados a um dia encontrar o homem ou a mulher dos nossos sonhos? Não podemos ser perdoados por uma fé supersticiosa numa criatura que será a solução de nossos anseios incansáveis? Podemos realmente esperar atribuir o encontro com este príncipe ou esta princesa a uma mera coincidência? Ou não podemos por uma vez uma fez fugir à censura racional e interpretar isso como nada além de nosso destino romântico?

Ambos sentimos que nunca havíamos falado assim com ninguém antes, que todo o resto havia sido compromisso e ilusão de nossa parte, que só agora éramos finalmente capazes de compreender – que a espera (de natureza messiânica) de fato havia acabado. Reconheci nela a mulher que havia procurado de modo desajeitado por toda a minha vida, cujo sorriso e cujos olhos, cujo o senso de humor e gosto literário, cujas ansiedades e inteligência se encaixavam perfeitamente em meu ideal.

E foi por sentir que éramos tão certos um para o outro que fui incapaz de considerar a ideia de que conhecer Chloe havia sido uma simples coincidência. Perdi a capacidade de analisar a questão da predestinação com o necessário ceticismo. Não supersticiosos normalmente, Chloe e eu nos agarrávamos a uma série de detalhes, por mais triviais que fossem, como uma confirmação do que já sabíamos por intuição: que havíamos sido destinados um para o outro.

Atribuímos ao tempo um senso narrativo que não lhe era inerente. Chloe e eu mitificamos nosso encontro no avião como o desígnio de Afrodite, Ato I, Cena I, da mais clássica e mítica configuração narrativa: a história de amor. 

Deveríamos, é claro, ter sido mais racionais. [...] A chance de nos conhecermos era de uma em 989.727. [...] E no entanto, havia acontecido. O cálculo, longe de nos convencer dos argumentos racionais, só reforçava a interpretação mística da nossa paixão. 

Abrigados pelo amor, ocultamos a natureza aleatória de nossas vidas por trás de um véu de intencionalidade. Somos forçados a crer que esse encontro com nosso redentor, objetivamente arriscado e daí improvável, foi pré-escrito num pergaminho que se desenrola devagar no céu. Inventamos um destino para escaparmos do medo de que o pouco sentido que haja em nossa vida seja criado apenas por nós mesmos, que não haja pergaminho. (e daí nenhum destino preordenado esperando) e o que possa, ou não, nos acontecer (podermos, ou não, nos encontrar em aviões) não faz nenhum sentido além do que escolhemos atribuir a ele – resumindo – a ansiedade de que ninguém tenha escrito nossa história ou assegurado nossos amores. 

O fatalismo romântico nos protegeu, a mim e a Chloe, da ideia de que pudéssemos, do mesmo modo, ter começado a amar outras se as coisas tivessem ocorrido de modo diferente. Um pensamento inconcebível quando o amor está tão ligado à natureza única do amado. Como eu poderia ter imaginado que o papel que Chloe veio a ter na minha vida pudesse ter sido igualmente preenchido por outra pessoa, quando foi pelos olhos dela que eu me apaixonei, e pelo seu jeito de escorrer o macarrão, de pentear os cabelos, e de encerrar uma conversa telefônica?

Meu erro havia sido confundir o destino de amar com o destino de amar uma determinada pessoa. Foi o erro de pensar que Chloe, diferente do amor, era inevitável. Contudo, minha interpretação fatalista do início de nossa história era pelo menos prova de uma coisa: eu estava apaixonado por Chloe. O momento em que eu sentisse que nosso encontro, ou não encontro, era no fim apenas um acidente, apenas uma probabilidade de 1 em 989.727, seria também o momento em que eu teria deixado de sentir a necessidade absoluta de uma vida com ela – e, portanto, deixado de amá-la. 


quarta-feira, 29 de março de 2017

Juan Gelman




Os iludidos

A esperança fracassa muitas vezes, a dor jamais. Por isso alguns creem que mais vale dor conhecida que dor por conhecer. Creem que a esperança é ilusão. São os iludidos da dor.












(poema de Juan Gelman, do livro Isso. Tradução, e introdução de Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves. Editora UNB)

quarta-feira, 15 de março de 2017

Milton Nascimento



Dona Olímpia

Vai e não esquece de chorar
Vê se não esquece de mentir
Dizer até manhã
E não regressar mais
Vê se não esquece de sumir

É ficou assim, caiu no ar
É passou assim, não quer passar
Não pára de doer
E não vai parar mais
Nem de vez em quando vai sarar
Me xinga me deixa me cega
Mas vê se não esquece de voltar

Tentar compreender
Quase não falar mais
E nem ser preciso perdoar
Me xinga me deixa me cega
Mas vê

https://www.youtube.com/watch?v=ttPGkKvsr7s


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Rebecca Newberger Goldstein





Betraying Spinoza

O que é que faz uma pessoa ser exatamente o que ela é, ela e não outra, uma integridade de identidade que se mantém ao longo do tempo, sofrendo mudanças, mas ainda assim continuando a ser - até não continuar mais, pelo menos não sem problemas? 

Olho fixamente para a foto de uma criancinha num piquenique de verão, agarrando a mão da irmã mais velha com um de suas mãozinhas, enquanto a outra segura precariamente uma enorme fatia de melancia, que ela parece ter lutado para que se acertasse com o pequeno"o" de sua boca. Essa criança sou eu. Mas por que sou eu? Não tenho nenhuma lembrança daquele dia de verão, sou tão incapaz quanto qualquer outra pessoa de dizer se a criança conseguiu pôr a melancia na boca. É verdade que uma suave progressão de acontecimentos físicos contíguos pode ser traçada desde seu corpo até o meu, de modo que poderíamos querer dizer que seu corpo é o meu; e talvez a identidade pessoal não passe disso, identidade de corpos. Mas a persistência corpórea ao longo do tempo também apresenta dilemas filosóficos. A progressão de acontecimentos físicos contíguos tornou o corpo da criança muito diferente daquele que eu olho de relance neste momento. Os próprios átomos que compunham seu corpo já não compõe o meu. E se nossos corpos são diferentes, nossos pontos de vista o são ainda mais. O meu seria tão inacessível para ela - imagine-a tentando compreender a Ética [de Spinoza] - quanto a dela é atualmente para mim. Seus processos de pensamento, pré-linguísticos, me enganariam amplamente.

E, contudo, aquela coisa minúscula e determinada vestindo um avental branco de babados sou eu. Ela continuou a existir, sobreviveu às doenças de sua infância, escapou de se afogar numa correnteza da praia de Rockaway Beach aos doze anos, e de outros dramas. Há presumivelmente aventuras pelas quais essa criança - isto é, eu - não pode passar e continuar a ser ela mesma. Seria eu outro alguém, ou simplesmente eu deixaria de existir? Se eu viesse a perder toda a consciência de mim mesma - fosse a esquizofrenia ou a possessão demoníaca, o coma ou uma demência progressiva o fator que me faz sair de mim mesma - seria eu quem passaria por essas provas ou eu teria que desocupar os locais? Nesse caso, haveria aí outra pessoa ou não haveria ninguém?

É a morte uma dessas aventuras das quais eu posso emergir como eu mesma? A irmã cuja mão estou segurando na foto já morreu. Eu me pergunto todo dia se ela ainda existe. Uma pessoa que se amou parece ser uma coisa significativa demais para simplesmente desaparecer por completo do mundo. Uma pessoa que se ama é um mundo, exatamente como cada um sabe ser ele mesmo um mundo. Como podem mundos como esses simplesmente cessarem de todo? Mas se minha irmã existe, então o que é ela, e o que faz com que essa coisa que ela é agora seja idêntica à linda moça que sorria para sua irmãzinha naquele dia esquecido?


Excerto retirado de "Guia de escrita", Steven Pinker - Tradução: Rodolfo Ilari