terça-feira, 26 de abril de 2011

Virginia Woolf




Juntos e à parte

Seu suspiro e depois sua risada, sua melancolia e seu senso de humor tornavam-no estimado por todos, e ele sabia disso, no entanto o fato de ser benquisto não compensava as decepções e, se dependia dessa estima que os outros tinham por ele (fazendo longas, longas, longas visitas a simpáticas damas), não era porém sem amargor, pois nunca fizera uma décima parte do que poderia ter feito e sonhou em fazer quando garoto em Canterbury.
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... mas essa receptividade e extraordinária facilidade para conversar de sua parte é que foram sua ruína, como não raro ele pensava, tirando as abotoaduras e pondo suas chaves e moedas no toucador depois de uma daquelas festas (durante a temporada ele ás vezes saía quase todas as noites)...
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...tinha fracassado, como tantas vezes pensava, porque não conseguia se desligar totalmente da sociedade e da companhia das mulheres, que lhe era tão necessária, para escrever. Envolvera-se muito a fundo com a vida - e a essa altura ele cruzaria as pernas (seus movimentos eram sempre um pouco anticonvencionais e distintos) e, para não se culpar, punha a culpa na exuberância de sua natureza, que comparava favoravelmente com a de Wordsworth, por exemplo, e, posto que ele já dera tanto aos outros, sentia, deixando repousar nas mãos a cabeça, que os outros deveriam por sua vez ajudá-lo, sendo isso o prelúdio, trêmulo, fascinante, estimulante, da conversa a manter; e em sua mente borbulhavam imagens.
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...sairia assim para talvez umas dez festas ou mais na temporada sem sentir nada fora do comum, ou apenas remorsos sentimentais e o desejo de belas imagens - como aquela cerejeira em flor - estagnando-se nele o tempo todo, sem a menor alteração, uma espécie de superioridade em relação ao circunstante, uma impressão de recursos inexplorados, que o mandava de volta para casa insatisfeito com a vida, consigo mesmo, bocejando vazio, volúvel. Mas agora, não mais que de repente, como um raio branco no nevoeiro, (imagem que assomava formada pela inevitabilidade da luz), aquilo tinha acontecido ali; o velho êxtase da vida; sua invencível investida; pois, se não era agradável, ao mesmo tempo alegrava e rejuvenecia, enchendo nervos e veias de filamentos de fogo e gelo; era aterrador.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Lév Tolstói



A morte de Ivan Ilitch


    O médico foi para a sala de visitas e comunicou a Prascóvia Fiodorovna que as coisas iam mal e que só lhe restava o recurso do ópio para abrandar as dores, que seriam tremendas.
     Não mentia o doutor, mas as dores morais de Ivan Ilitch eram infinitamente piores do que as físicas. Resultavam do fato de, naquela noite, ao contemplar o rosto de Guerássim, sonolento, bondoso, de maçãs salientes, acudir-lhe à mente a seguinte indagação: "E se toda a minha vida, minha vida consciente, tivesse sido realmente errada?"
    Ponderou que aquilo que antes acreditava ser totalmente impossível, isto é, não ter vivido como deveria, podia ser verdade. Considerou que as pequeninas tentativas que fizera, tentativas quase imperceptíveis e que logo sufocava, para lutar contra o que era considerado acertado pelas pessoas mais altamente instaladas na sociedade, podiam representar o lado autêntico das coisas, sendo falso tudo mais. E que os seus deveres profissionais, sua vida regrada, a ordem familiar e todos os interesses mundanos e oficiais não passassem de grandes mentiras. Tentou defender tudo aqui perante si mesmo e, de repente, atinou com a frugalidade da sua defesa. Não havia nada a defender.
    "Mas se assim é, estou eu saindo da vida com a plena consciência de ter destruído tudo o que me foi concedido e, se a perda é irreparável, que irei fazer?", pensou. E, deitado de costas, pôs-se a passar em revista a sua vida de maneira completamente diversa.
    De manhã, quando apareceram sucessivamente o criado, a mulher, a filha e o médico, cada palavra, cada gesto deles era a confirmação da tremenda verdade que lhe fora revelada de noite. Reviu-se em cada um - sua existência fora precisamente o que era a deles. E viu de forma espantosamente clara que não passava ela dum imenso e horrendo embuste, que escondia a vida e a morte. 

terça-feira, 19 de abril de 2011

Jens Peter Jacobsen




Niels Lyhne

Experimenta uma sensação de força desconhecida no fato de ver com os próprios olhos, escolher com o próprio coração e modelar a si próprio. Tanta coisa nova aflora à superfície do seu espírito, tantas facetas da sua natureza, antes ignoradas, desperdiçadas, combinam-se maravilhosamente em um todo harmonioso! É o tempo encantado das descobertas, quando ele, cheio de medo e de incerta alegria, cheio de uma felicidade intranquila, descobre a si mesmo. Em primeiro lugar, ele nota que não é igual aos outros; isso desperta-lhe um pudor moral que o torna acanhado, lacônico, arredio. Fica desconfiado, e em tudo que se fala vê alusões aos seus mais íntimos segredos. Por ter aprendido a ler em si mesmo, acredita que todo mundo também poderá ler o que está escrito na sua consciência, evita os adultos e aprofunda a sua solidão. Parece-lhe que que os homens de súbito tornaram-se estranhamente inoportunos. Sente-se vagamente hostil em relação a eles, como se fossem seres de outra raça, e no seu isolamento começa a distingui-los, a observá-los e a julgá-los. Outrora os nomes de pai, mãe, pastor e moleiro davam uma idéia perfeita e suficiente dessas criaturas. O nome escondia a pessoa. O pastor era o pastor e não havia nada mais a dizer. Mas agora ele via que o pastor era um homenzinho jovial, que em casa se fazia ainda menor e tão quieto quanto possível, para não ser percebido pela mulher, e fora de casa embriagava-se de conversas e de discussões revolucionárias e libertárias para esquecer o jugo caseiro.
Eis em que tinha se transformado o pastor.