quinta-feira, 17 de março de 2011

Rainer Maria Rilke





Os cadernos de Malte Laurids Brigge

Creio que devia começar a trabalhar, agora que aprendo a ver. Tenho vinte e oito anos, e até aqui aconteceu tanto como nada. Vamos repetir: escrevi um estudo sobre Carpaccio, que é mau; um drama chamado "Matrimônio" que quer provar, por meios equívocos, qualquer coisa falsa; e versos. Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo o bastante),- são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se  conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos e regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, - em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria pra outro -), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual à outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só guando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas.

terça-feira, 1 de março de 2011

Jorge Luis Borges





The unending gift 

Um pintor nos prometeu um quadro.
Agora, em New England, soube que morreu. Senti, como de outras
vezes, a tristeza e a surpresa de compreender que somos como 
um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar prefixado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse ali, seria, com o tempo, essa coisa a
mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos de minha casa;
agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e de 
qualquer cor e não sujeita a nenhuma.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música, e 
estará comigo até o fim. Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal.)