quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Blaise Pascal





Pensamentos


[139]
Sobrecarregam os homens desde a infância com o cuidado de sua honra, dos bens, dos amigos, e ainda dos bens e da honra dos amigos; cumulam-nos de afazeres, do aprendizado das línguas e de exercícios e se lhes dá  a entender que não conseguiriam ser felizes sem que a sua saúde, honra e fortuna e as de seus amigos, estivessem em bom estado, e que a falta de uma única coisa dessas os tornará infelizes. Assim, são lhes dados encargos e afazeres que os fazem quebrar a cabeça desde o raiar do dia. Aí está, direis, uma estranha maneira de torná-los felizes; que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? Como, o que se poderia fazer? Bastaria retira-lhes todas essas preocupações, porque então eles se veriam, pensariam naquilo que são, de onde vêm, para onde vão, e assim nunca é demais ocupá-los e desviá-los disso. E eis por que, depois de preparar-lhes tantos afazeres, se ainda tiverem algum tempo livre, aconselha-se que o empreguem em se divertir, e jogar, e ocupar-se sempre por inteiro.

[166]
Corremos despreocupados para o precipício depois de ter colocado alguma coisa à nossa frente para impedir-nos de vê-lo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Wislawa Szymborska



Sob uma estrela pequenina


Me desculpem o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que chamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nda me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Rainer Maria Rilke



Sobre Arte

Considero a arte o esforço de um indivíduo em chegar a um acordo com todas as coisas, as menores e as maiores, para além do estreito e obscuro e, nesses consistentes diálogos, aproximár-se das fontes últimas, silenciosas de toda vida. No interior desse indivíduo, os segredos das coisas se fundem com suas mais profundas sensações e se tornam audíveis para ele, como se fossem seus próprios anseios. A rica linguagem dessas confissões íntimas é a beleza.

Não espere que eu fale de meu esforço interior - devo me manter calado a respeito; seria aborrecido, mesmo para mim, prestar contas de todas as mudanças de fortuna que eu teria de sofrer em minha batalha por concentração. Essa inversão de todas as forças, essa mudança de direção da alma nunca ocorre sem inúmeras crises. A maioria dos artistas a evita por meio das distrações. Mas é por isso também que jamais chegam a tocar seu centro de produção, donde partiram no momento do seu mais puro elã. Toda vez, no início do trabalho, é preciso refazer para si essa inocência primeira, retornar ao local ingênuo onde o anjo se revelou a você quando lhe passou a primeira mensagem sedutora; é preciso reencontrar, por trás das amoreiras silvestres, a cama onde então se caiu no sono. Dessa vez não se irá dormir ali, mas suplicar, gemer - não importa; se o anjo se dignar  vir, será porque você o convenceu, não com lágrimas, mas com sua humilde decisão de começar sempre: ser um iniciante! 


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Czeslaw Milosz



A Song on the End of the World

On the day the world ends
A bee circles a clover,
A fisherman mends a glimmering net.
Happy porpoises jump in the sea,
By the rainspout young sparrows are playing
And the snake is gold-skinned as it should always be.

On the day the world ends
Women walk through the fields under their umbrellas,
A drunkard grows sleepy at the edge of a lawn,
Vegetable peddlers shout in the street
And a yellow-sailed boat comes nearer the island,
The voice of a violin lasts in the air
And leads into a starry night.

And those who expected lightning and thunder
Are disappointed.
And those who expected signs and archangels’ trumps
Do not believe it is happening now.
As long as the sun and the moon are above,
As long as the bumblebee visits a rose,
As long as rosy infants are born
No one believes it is happening now.

Only a white-haired old man, who would be a prophet
Yet is not a prophet, for he’s much too busy,
Repeats while he binds his tomatoes:
There will be no other end of the world,
There will be no other end of the world.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Rafael R. Macêdo




seria assim

gosto da leveza que brota da tua gengiva, se acontece de você sorrir;
da combinação formosa da tua saia cáqui, assim, bordada,
com o azul escuro das tuas sapatilhas.

gosto disso; não sei por que.

e do modo curioso dos teus olhos ágeis, estrangeiros, infantis, cientes de tudo,
que me reconfortam, sem que você saiba, desde muito tempo...
sem que pra isso eu tenha escutado sequer teu nome,

como se tivesse sido sempre assim:
cálido e passageiro, ambíguo e inevitável,
contemplar teu rosto de longe e sempre.

por isso eu fico aqui.

do contrário, estaríamos longe agora, deitados, eu e você, assim:
preguiçosos e esquecidos, numa grama qualquer daqui,
invisíveis feito a chuva modesta, que de tão fina, cede seu passo à força do vento,
marejando os olhos da senhora gorda com carinho.

e talvez houvesse uma taça, muriçocas ou então formigas,
e assim você soubesse que prefiro sempre dormir de meias,
mesmo que não faça frio, que me sinto mais seguro assim.

e quem sabe você me contasse, numa calma sedutora,
apoiando suas costas pelos cotovelos, desse jeito,
tudo quanto foi seu dia até aqui, tudo quanto foi sua vida até eu te olhar;

e por tudo encontraria em mim uma expressão confortável de alegria,
feito uma esperança satisfeita, como se o tempo cochilasse,
se esquecesse da pressa, numa brincadeira morna e suave,
tão antiga quanto o próprio mundo.

seria assim, eu sei.
e de que outra forma poderia ser, meu deus?

Edwin Morgan




De uma Varanda da Cidade


Quantas vezes quando penso em você o dia se ilumina!
Nosso amor silencioso
vagueia no Glen Fruin com borboletas e cucos -
me traz a sonolênca do campo! Deixe que flutue sobre o tráfego
pela janela aberta com uma nuvem de testemunhas -
uma queimadura cintilante, ovelhas brancas, a chama do junco,
os cucos chamando loucamente, a nuvem branca real sobre nós,
borboletas brancas sobre sua mão na curta grama quente,
e então a testemunha era minha mão fechando na sua,
minha boca penteando suas pálpebras e seu lábios
muitas vezes até você suspirar e se voltar para o amor.
Seu peito e coxas estavam ardendo como o junco.
Eu cobri sua fogueira em silêncio ali.
Deixamos o dia envelhecer junto com a grama.
Era em silêncio que o amor estava.

Passos e testemunhas! Nesta varanda de Glasgow quem serve
alegria como a água da montanha? Ela enche, transborda outra vez
para baixo da terra árida e rodas implacáveis.
Quantas vezes eu pensarei em você, até
que nossos passos moribundos esqueçam esta luz, esqueçam
que um dia conhecemos o vale feliz,
ou que um dia eu disse, Nós devemos pular em direção ao sol,
e nós pulamos em direção ao sol.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Wislawa Szymborska



Repenso o mundo

Repenso o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
aos idiotas o riso,
aos tristes o pranto,
aos carecas o pente,
aos cães botas.

Eis um capítulo: A Fala dos Bichos e das Plantas,
com um glossário próprio
para cada espécie.
Mesmo um simples bom dia
trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.

Essa há muito pressentida,
de súbito revelada,
improvisação da mata.
Essa épica das corujas!
Esses aforismos do ouriço
compostos quando imaginamos
que, ora, está só adormecido!

O tempo (capítulo dois)
tem o direito de se meter
em tudo, coisa boa ou má.
Porém - ele que pulveriza montanhas
remove oceanos e está
presente na órbita das estrelas,
não terá o menor poder
sobre os amantes, tão nus
tão abraçados, com o coração alvoroçado
como um pardal na mão pousado.

A velhice é uma moral
só na vida de um marginal.
Ah, então todos são jovens!
O sofrimento (capítulo três)
não insulta o corpo.
A morte
chega com o sono.

E vais sonhar
que nem é preciso respirar,
que o silêncio sem ar
não é uma música má,
pequeno como uma fagulha,
a um toque te apagarás.

Morrer, só assim. Dor mais dolorosa
tiveste segurando nas mãos uma rosa
e terror maior sentiste ao som
de uma pétala caindo no chão.

O mundo, só assim. Só assim
viver. E morrer só esse tanto.
E todo o resto - é como Bach
tocado por um instante
num serrote.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Walt Whitman



Folhas de Relva

Transeuntes e pedintes me rodeiam,
Gente que eu cruzo. . . . . o efeito da aurora da minha vida . . . . . ou do bairro e da 
              cidade onde vivo . . . . . ou dessa nação,
As últimas notícias . . . . descobertas, invenções, sociedades . . . . velhos e novos autores,
Jantares, trajes,  sócios, olhares, elogios, funções,
A indiferença real ou simulada de uma mulher ou homem que eu esteja amando,
A doença de um chegado - ou a minha mesmo . . . . ou imprudência . . . .ou perda
               ou falta de grana . . . . . ou depressões ou euforias,
Dia e noite essas coisas me alcançam e de novo partem de mim,
Mas nada disso é Eu mesmo.

Além do empurra-empurra e do trânsito está o que eu sou,
Que se levanta feliz, complacente, compassivo, preguiçoso, unitário.
Que olha pra baixo, fica ereto, ou apóia o braço num indefinível impalpável descanso,
Que olha com a cabeça pensa pro lado curiosa pra saber o que vem por aí,
Dentro e fora do jogo ao mesmo tempo e observando e admirado com isso.

Olho por trás e vejo meus dias onde suei pra atravessar o nevoeiro com linguistas e
                 debatedores,
Não ironizo nem argumento . . . . só testemunho e espero. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Charles Baudelaire



O Pintor da Vida moderna

Mas é chegada a noite. É a hora estranha e incerta em que as cortinas se fecham, em que as cidades se iluminam. O lampião de gás mancha a púrpura do sol poente. Honestos ou desonestos, sensatos ou insanos, os homens dizem para si mesmos: “Enfim o dia acabou!”. Os homens de conhecimento e os de má vida pensam no prazer e correm todos ao lugar de sua preferência para beber a taça do olvido. O Sr. G. será o último a ir-se embora de onde quer que possa resplandecer a luz, ecoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a música; de onde quer que uma paixão possa posar para o seu olhar, de onde quer que o homem natural e o de convenção se mostrem numa beleza estranha, de onde quer que o sol ilumine as alegrias passageiras do animal depravado! [...] Agora, no momento em que os outros dormem, esse homem está curvado sobre a mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco fixava sobre as coisas, esgrimindo com seu lápis, sua caneta, seu pincel, respingando no teto a água do copo, limpando a pena na camisa, apressado, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem, brigando sozinho, esbarrando em si mesmo. E as coisas renascem sobre o papel, naturais, e mais que naturais; belas, e mais que belas; singulares e dotadas, como a alma do autor, de uma vida em estado de exaltação. A fantasmagoria, ele a extraiu da natureza. Todos os materiais que abarrotavam a memória agora se ordenam, se arranjam, se harmonizam e sofrem essa idealização forçada que é o resultado de uma percepção infantil, isto é, de uma percepção aguda, mágica, graças à ingenuidade!

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Montaigne




Que filosofar é aprender a morrer

Vossa morte é uma das peças da ordem do universo, é uma peça da vida do mundo, os mortais partilham a vida assim como os corredores se repassam sua tocha. Mudarei por vós esta bela organização das coisas? É condição de vossa criação; a morte é uma parte de vós: fugis de vós mesmos.
A vida não é em si nem bem nem mal: nela o bem e o mal têm o lugar que lhes dais. E se vivestes um dia, vistes tudo: um dia é igual a todos os dias. Não há outra luz nem outra noite. Esse Sol, essa Lua, essas Estrelas, essa disposição é esta mesma que vossos antepassados desfrutaram e que já de entreter vossos tataranetos. E, na pior hipótese, a distribuição e a variedade de todos os atos de minha comédia se completam em um ano. Se tivestes prestado atenção no movimento de minhas quatro estações, terei visto que abrangem a infância, a adolescência, a idade madura e a velhice do mundo. Ele jogou seu jogo: não conhece outro ardil senão recomeçar; sempre será assim. Não pretendo forjar-vos outros novos passatempos. Cedei lugar aos outros, como outros vos cederam. A igualdade é a primeira peça da equidade. Quem pode se queixar de ser incluído quando todos são incluídos?
Onde quer que vossa vida acabe, ela está toda aí. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco viveu. Atentai para isso enquanto estais aqui. Tudo não se mexe como vos mexeis? Há coisa que não envelheça convosco? Mil homens, mil animais e mil outras criaturas morrem neste mesmo instante em que morreis. Por que temeis vosso último dia? Ele não conduz à vossa morte mais do que cada um dos outros. O último passo não vos traz a lassidão: revela-a. Todos os dias levam à morte: o último a alcança.

(Solilóquio da Natureza, Lucrécio)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Montaigne



Que filosofar é aprender a morrer


A um soldado de sua guarda, exausto e alquebrado, que veio pela rua pedir-lhe permissão para se matar, César respondeu gracejando ao notar sua aparência decrépita: "Pensas então que estás vivo?". Se caíssemos de repente nesse estado, não creio que seríamos capazes de suportar tal mudança. Mas conduzidos pela mão da natureza, por uma suave ladeira e como que insensível, pouco a pouco, de degrau em degrau nos envolvemos nesse estado miserável a que nos acostumamos, assim como não sentimos nenhum abalo quando a juventude morre dentro de nós, o que, no fundo e na verdade, é a morte mais dura que a morte completa de uma vida languescente e que a morte da velhice. Tanto mais que o salto do mal existir para o não existir não é tão árduo como aquele de uma existência suave e florescente para uma existência penosa e dolorosa. O corpo encurvado e dobrado tem menos força para suportar um fardo, nossa alma também. É preciso treiná-la e educá-la contra o esforço desse adversário. Pois, como é impossível que encontre o descanso enquanto o temer, caso se fortaleça pode se vangloriar (o que é coisa que ultrapassa a condição humana) de ser impossível que nela se alojem a inquietação, o tormento e o medo, e até a mínima insatisfação.

domingo, 31 de julho de 2011

Mia Couto



A cantadeira 

Acabei a minha sessão de canto, estou triste, flor depois das pétalas. Reponho sobre meu corpo suado o vestido de que me tinha libertado. Canto sempre assim, despida. Os homens, se calhar, só me vêm ver por causa disso: sempre me dispo quando canto. Estranha-se? Eu pergunto: a gente não se despe para amar? Porque não ficar nua para outros amores? A canção é só isso: um amor que se consome em chama entre o instante da voz e a eternidade do silêncio.

Outros cantadores, quando actuam em público, se trajam de enfeites e reluzências. Mas, em meu caso, cantar é coisa tão maior que me entrego assim pequenitinha, destamanhada. Dessa maneira, menos que mínima, me torno sombra, desenhável segundo tonalidades da música.

Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida. Dizem mas, para mim, a voz serve-me para outras finalidades: cantando eu convoco um certo homem. Era um apanhador de pérolas, um vasculhador de maresias. Esse homem acendeu a minha vida e ainda hoje eu sigo por iluminação desse sentimento. O amor, agora sei, é a terra e o mar se inundando mutuamente.

Amei esse peroleiro tanto até dele perder memória. Lembro apenas de quanto estive viva. Minha vida se tornava tão densa que o tempo sofria enfarte, coagulando de felicidade. Só esse homem servia para meu litoral, todas vivências que eu tivera eram ondas que nele desmaiavam. Contudo, estou fadada apenas para instantes. Nunca provei felicidade que não fosse uma taça que, logo após o lábio, se estilhaça. Sempre aspirei ser árvore. Da árvore serei apenas luar, a breve crença de claridade.

Em certo momento, me extraviei de sua presença, perdi o búzio e o mar que ecoava dentro. Ele embarcou para as ilhas de Bazaruto, destinado a arrancar riquezas das conchas. Apanhador de pérolas, certeiro a capturar, entre as rochas, os brilhos delas. Só falhou me apanhar a mim, rasteirinha que vivi, encrostada entre rochas. [...]

Minha vida foi um esperadouro. Estive assim, inclinada como praia, mar desaguando em rio, Índico exilado, mar naufragado. Estive na sombra mas não fiquei sombria. Pelo menos, nas primeiras esperas. Valia-me cantar. Espraiei minha voz por mais lugares que tem o mundo.

– Esse homem me lançou um bom-olhado?

Demorasse assim sua ausência, a espera não se sujava com desespero. Me socorria a lembrança de seus braços como se fossem a parte do meu próprio corpo que me faltasse resgatar.

Para sempre me ficou esse abraço. Por via desse cingir de corpo minha vida se mudou. Depois desse abraço trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro. Agora, é dentro que tenho pele. Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma. Nesse reverso, a poeira da rua me suja é o coração. Vou perdendo noção de mim, vou desbrilhando. E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro. Todo este tempo me madreperolei, me enfeitei de lembrança.


sábado, 30 de julho de 2011

Rainer Maria Rilke





Cartas sobre Cézanne

... nunca a urze me tocou tanto, a ponto de comover-me, como recentemente, ao achar estes três ramos em sua amável carta. Desde então eles se encontram no meu Livro de Imagens, penetrando-o com seu cheiro forte e sóbrio, que no fundo nada mais é do que o perfume da terra no outono. [...]

Acredito que os pequenos ramos não podiam ser tão belos quando foram enviados: senão você teria demonstrado seu espanto. Por acaso, um se encontra agora sobre o veludo azul-escuro de um velho escrínio. É como um fogo-de-artifício: não, é mesmo como um tapete persa. Será que todas estas milhões de hastes são trabalhadas de modo tão primoroso? Veja o matiz do verde, no qual há um pouco de ouro, e o marrom morno dos sândalos nos pequenos talos, e a ruptura com seu tom interno quase verde, novo, fresco. -Ah, há dias admiro o esplendor destes três pequenos fragmentos e envergonho-me bastante de não ter sido feliz quando podia passear no meio de tudo isto, de tal abundância. Vivemos tão mal porque chegamos sempre inacabados ao presente, incapazes e dispersos em tudo.

domingo, 24 de julho de 2011

Peter Berger



Perspectivas Sociológicas

Estamos cercados de trevas por todos os lados enquanto nos precipitamos pelo curto período de vida em direção à morte inevitável. A terrível pergunta 'por quê?', que quase todo homem faz num momento ou outro ao tomar consciência de sua condição, é rapidamente sufocada pelas respostas convencionais da sociedade. A sociedade nos oferece sistemas religiosos e rituais sociais que nos livram de tal exame de consciência. O 'mundo aceito sem discussão', o mundo social que nos diz que tudo está bem, constitui a localização de nossa inautenticidade. Suponhamos um homem que desperte de noite, de um desses pesadelos em que se perde todo o senso de identidade e localização. Mesmo no momento de despertar, a realidade do próprio ser e do próprio mundo parece uma fantasmagoria onírica que poderia desaparecer ou metamorfosear-se a um piscar de olhos. A pessoa jaz na cama numa espécie de paralisia metafísica, tendo consciência de si, mas um passo além daquele aniquilamento que avultara sobre ela no pensamento recém-findo. Durante alguns momentos de consciência dolorosamente clara, pode quase sentir o cheiro da lenta aproximação da morte e, com ela, do nada. E então estende a mão para pegar m cigarro e, como se diz, 'volta à realidade'. A pessoa se lembra de seu nome, endereço, ocupação, bem como dos planos para os dias seguinte. Caminha pela casa, cheia de provas do passado e do presente identidade. Escuta o ruídos da cidade. Talvez desperte a mulher e as crianças, reconfortando-se com seus irritados protestos. Logo acha graça da tolice, vai à geladeira ou ao barzinho da sala, e volta a dormir resolvido a sonhar com a próxima promoção (...) A sociedade nos oferece nomes para nos proteger do nada. Constrói um mundo para vivermos e assim nos protege do caos em que estamos ilhados. Oferece-nos uma linguagem e significados que tornam esse mundo verossímil. E proporciona um coro firme de vozes que confirmam nossas crenças e calam nossas dúvidas latentes (...) As paredes da sociedade são uma autêntica aldeia Potemkin levantada diante do abismo do ser; têm a função de proteger-nos do terror, de organizar para nós um cosmo de significado dentro do qual nossa vida tenha sentido".

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Gyula Krúdy




O companheiro de viagem

A cidade por fim se entristecia, como arrependida da animação que abrigara. Acima dos telhados das casas fumegava a neblina de um tédio indizivelmente triste. Das janelas, filtrava-se aqui e ali uma chama de vela, sinal de que ainda não haviam morrido todos na cidade. Mas o que fazia os vivos naquele lugar? Liam livros, contavam sempre as mesmas histórias; extasiados, sentados com os braços cruzados às costas, fitavam o vazio ou inventavam projetos liliputianos para o dia seguinte; como crianças, montavam o pinheiro ao lado das casinhas de brinquedo...

O que haveria no interior das casas que impedia as pessoas de sair correndo para as ruas, a chorar, como se despertasse a consciência de que não valia a pena viver? O que perpetuava nelas a vida e permitia que sobrevivessem às noites geladas, solitárias e tristes, quando a neve congelava sobre a janela, a escuridão era mesma dos túmulos, a cama lembrava um caixão enquanto ficavam deitadas, insones, rangendo os dentes, porque uma mosca que dormia seu sono invernal despencara do teto sobre o nariz? O que animava a espera sem sentido pela manhã? O que haveria amanhã - santa missa, casamento ou morte - em cujo nome seria digno passar às golfadas a noite gélida, longa e amarga, quando o relógio da torre mal batia as horas?  

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Virginia Woolf



Noite de festa

"Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para a minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso que fazemos. Pense bem a este respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento."

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Czeslaw Milosz



A assim chamada vida 

A assim chamada vida, quer dizer
Tudo o que é assunto de telenovela
Não lhe parecia digno de relatar.
Mesmo que quisesse falar, não o sabia.
Admiravam-no as histórias de homens e mulheres
Que se iam arrastando até à deslembrança coruscante.
Ele próprio só sabia cerrar os dentes, aguentar e
esperar que a velhice inviabilizasse os dramas,
que a novela de amores, ódios, tentações e traições
rebentasse como uma bola de sabão.






sexta-feira, 24 de junho de 2011

floribundo



Trazia uma lembrança feliz de quase tudo que vivera na graduação. Meia dúzia de amigos, seus primeiros porres, um namoro mal resolvido. Gostava de passar as tardes num balanço atrás de um bambuzal, fumando com os amigos alguns baseados, diluindo na memória as aulas, deixando que tempo escorresse com calma numa despreocupada imprevidência. Uma vida lazer, como se diz.
Preferia se lembrar dos dias bonitos, quando fazia frio e todos caminhavam agasalhados sob a luz do sol, que percorria a grama miúda, já cinzenta, e que aos poucos ia sumindo, desfazendo-se no chão com a secura do inverno, até quase restar somente o barro, que por sua vez, tornaria então, como que por contraste, mais generosa a vista da desconcertante floração de ipês, que naquela época do ano inundavam o campus e pareciam tornar a vida mais alegre. 
E recordava especialmente de quando era preciso parar o carro antes da faixa pra que um pedestre com a mão esticada prosseguisse, e então, atrás dele, cruzassem também, em pequenos grupos, jovens calouros, satisfeitos e ainda sem carro, tranquilos, preguiçosos, taciturnos ou sonolentos, sobretudo entusiasmados por estarem ali, atravessando a faixa a caminho da UnB.
A luz do sol que refletia sobre o pára-brisa fixou-se em sua memória como um quadro, onde bem ao fundo, muito além dos pedestres, avistava também uma diminuta porção do lago e a névoa que sobre ele ascendia devagarinho, e antes disso, num plano mais próximo, assim, intermediário, um modesto ipê, já antigo, que coloria a grama com as pétalas amarelas das flores que se acomodavam ao chão no formato de um círculo caprichosamente mal traçado. 

terça-feira, 14 de junho de 2011

Lucian Blaga



Aos leitores

Aqui é minha casa. Ali ficam o sol e o jardim com colméias.
Vocês vêm pela trilha, olham da porta por entre as grades
e esperam que eu fale. ... Por onde começar?
Creiam em mim, creiam em mim,
sobre seja o que for pode-se falar quanto se queira:
sobre o destino e sobre a serpente do bem,
sobre os arcanjos que lavram com o arado
os jardins do homem,
sobre o céu para onde crescemos,
sobre o ódio e a queda, tristezas e crucifixões
e acima de tudo sobre a grande travessia.
Mas as palavras são as lágrimas de quem teria desejado
tanto chorar e não pôde.
São tão amargas as palavras todas,
por isso... deixem-me
passar mudo por entre vocês
sair à rua de olhos fechados.

(1924)

sábado, 4 de junho de 2011

Walt Whitman





Folhas de Relva


Já percebi que estar junto de quem gosto me basta,
Ficar na companhia dos outros, num fim de tarde me basta,
Estar cercado por suas carnes belas curiosas gargalhantes e sem fôlego me basta,
Passar no meio deles . . tocar qualquer um . . . . pousar de leve meu braço ao redor do
           pescoço dele ou dela por um momento . . . . o que é isso?
Não peço delícia melhor . . . . mergulho nisso como num mar.

Tem alguma coisa em ficar perto de homens e mulheres e no olhar e no contato e nos
          seus cheiros que satisfazem a alma,
Todas as coisas satisfazem a alma, mas essas sim satisfazem a alma.

sábado, 21 de maio de 2011

Gyula Krúdy



O companheiro de viagem

Por essa época, eu completei quarenta anos, e às vezes passava dias muito infelizes; ao abrir os olhos de manhã, temia alguma catástofre; a noite era cheia de maus presságios; pensava a toda hora que já não viveria muito...
            (Assim começou sua narrativa o meu companheiro de viagem, de quem eu não sabia mais do que o costumeiro sobre aqueles com quem passamos um longo dia ou uma noite aparentemente interminável num barco a vapor ou num trem. Há muito perdi a vontade de fazer novos conhecidos, porém meu companheiro simpático e calmo, de olhos tristes, cabelos grisalhos, parecia distinto e simples, e não imaginei que pudesse ameaçar meu descanso durante a noite. Viajávamos à luz da lua, as árvores, como saias enfileiradas, nos acompanhavam, as raposas, invisíveis que, como num enigma, desapareciam para sempre ante o olhar dos caçadores, latiam nos campos claros, os gansos selvagens, alçavam voo, içando um tom prateado na distância, podia-se imaginar que na estrada cinzenta, junto aos trilhos caminhavam pessoas infelizes à sombra de copas que se moviam no ritmo de um coração lento, apareciam casebres brancos como cães deitados, um pavio ardia detrás de uma janela com recorte em folha, talvez acabassem de matar alguém ou um velho camponês agonizante balbuciasse as últimas palavras; como a tristeza, a chuva nos alcançou, e da noite escura lançava lágrimas sobre a janela impiedosa. "onde estarão aqueles que amo?", pensei tiritante, como se nunca mais fosse ouvir a fala agradável das bocas queridas, mas apenas as palavras tristes de meu companheiro de viagem, que zumbiam em torno de minha cabeça como se a morte lesse a Bíblia.)

domingo, 8 de maio de 2011

J. W. Goethe





Os sofrimentos do jovem Werther

        Que a vida humana é apenas um sonho já ocorreu a muita gente, e esta ideia também me persegue por toda parte. Quando vejo os limites que aprisionam a capacidade humana de ação e pesquisa; quando vejo que toda a atividade se esgota na satisfação de necessidades cujo único propósito é prolongar a nossa pobre existência e, também, que toda a tranquilidade em relação a certas questões não passa de resignação sonhadora, pois as paredes que nos aprisionam estão cobertas de formas coloridas e perspectivas luminosas... isso tudo, Wilhelm, me deixa estupefato. Volto-me para dentro de mim mesmo e encontro um mundo! Mais de pressentimentos e desejos que de raciocínios e forças vitais. E então, tudo flutua ante meus olhos, sorrio e sonhando penetro ainda mais neste mundo.
     As crianças querem as coisas sem saber por que as querem, nisso todos os mestres-escolas e preceptores estão de acordo; mas adultos também cambaleiam por este mundo feito crianças, sem saber de onde vêm, nem para onde vão, agindo sem objetivos determinados e deixando-se governar igualmente com biscoitos, bolo e vara de marmelo: ninguém acredita, mas me parece que não há verdade mais palpável.
          Confesso a você, pois sei o que vai me dizer a respeito, que os mais felizes são aqueles que como as crianças vivem para o presente, vestindo, despindo e levando as suas bonecas para passear, espreitando com grande respeito a gaveta onde a mamãe guarda o pão doce, e quando finalmente conseguem apanhar o que querem, devoram tudo com avidez e gritam: "Mais!"...Sim, são essas criaturas felizes. Felizes também aqueles que dão às suas ocupações fúteis, ou mesmo mesmo às suas obsessões, títulos pomposos, fazendo-as passar como proezas de gigante, realizadas para salvação e o bem estar da humanidade. - Ditosos sejam aqueles que podem ser assim. Mas quem reconhece humildemente aonde vai dar tudo isso, quem então vê com que delicadeza o ditoso burguês sabe cuidar de seu jardim, fazendo dele um paraíso, e com que perseverança o infeliz  também carrega ofegante o seu fardo, todos igualmente interessados em ver um minuto a mais a luz de sol.... sim, esse é tranquilo e forma o seu mundo a partir de si mesmo e também é feliz por ser um homem. E depois, por mais limitado que seja, mantém sempre viva no coração a doce sensação de liberdade, sabendo que pode sair deste cárcere quando quiser.

domingo, 1 de maio de 2011

Anton Tchékhov







A dama do cachorrinho

Olhando-a agora, Gugov pensou:"Quantos encontros diferentes acontecem na vida!". O passado deixara-lhe a lembrança de mulheres despreocupadas, benevolentes, alegres de amor, e que lhe eram agradecidas pela felicidade, embora muito breve, que lhes proporcionava; de outras, como, por exemplo, sua mulher, que amavam sem sinceridade, com palavras supérfluas, afetadamente, com histeria, com uma expressão que parecia significar não ser aquilo amor, nem paixão, mas algo mais significativo; e ainda de outras duas ou três, muito bonitas, frias, em cujo rosto aparecia, de repente, uma expressão rapace, um desejo insistente de tirar, arrancar da vida mais do que esta pode dar, e eram mulheres que não estavam mais na primeira juventude, birrentas, voluntariosas, pouco inteligentes; quando Gurov tornava-se indiferente a elas, sua beleza passava a despertar nele ódio e julgava ver escamas no rendado de suas roupas brancas. [...]

Em Oreanda, ficaram sentados num banco, perto da igreja, olhando em silêncio o mar. Quase não se via Ialta através da névoa matinal, nuvens brancas permaneciam imóveis, junto aos cumes das montanhas. A folhagem não se movia sobre as árvores, gritavam cigarras, e o som monótono, abafado do mar, que chegava de baixo, falava de descanso, do sono eterno que nos aguarda. Assim tumultuara lá embaixo, quando ainda não existiam Ialta, nem Oreanda; o mesmo ruído do não existirmos mais. E nessa permanência, nessa completa indiferença em relação à vida e à morte de cada um de nós, oculta-se talvez o fundamento de nossa eterna salvação, do incessante movimento da vida sobre a terra, da perfeição imorredoura. Sentado ao lado da jovem mulher, que, ao alvorecer, parecia tão bonita, acalmado e embevecido face ao ambiente encantado, face ao mar, às montanhas, às nuvens, ao amplo céu, Gurov pensava em como, na realidade, refletindo-se direito sobre tudo isto, tudo é belo neste mundo, tudo, com a exceção do que nós mesmos pensamos e fazemos, quando nos esquecemos dos objetivos elevados da existência e de nossa própria dignidade humana. [...]

Depois, encontravam-se sempre ao meio-dia, à beira-mar, almoçavam juntos, jantavam, passeavam, encantavam-se com o mar. Ela queixava-se de insônia e de que o coração lhe batia de modo alarmante, fazia-lhe sempre as mesmas perguntas, perturbada ora pelo ciúme, ora pelo temor de que ele não a estimasse o suficiente. E muitas vezes, no parque ou em algum jardinzinho público, quando não havia ninguém nas proximidades, ele a atraía de repente pra si e beijava-a apaixonado. Aquele ócio completo, aqueles beijos em pleno dia, repassados do temor de serem surpreendidos, o calor, a maresia e o perpassar incessante de gente ociosa, bem-vestida e nutrida, pareceram tê-lo transformado completamente. Dizia a Ana Sierguéievna como ela era bonita e tentadora, demonstrava uma impaciência apaixonada, não a deixava por um momento. Ela ficava frequentemente pensativa, pedindo-lhe sempre para confessar que não a estimava, não a amava um sequer, e que via nela simplesmente uma mulher vulgar. Quase sempre, quando já estavam adiantado o anoitecer, iam para fora da cidade, para Oreanda ou para a cachoeira. Os passeios eram sempre bem-sucedidos, deixando invariavelmente impressões magníficas, grandiosas.
Esperavam a vinda do marido. Mas chegou dele uma carta, em que informava estar com a vista dolorida e implorava à mulher que regressasse o quanto antes. [...]

Passaria um mês, mais ou menos, e Ana Sierguéievna, tinha a impressão, cobrir-se-ia de bruma em sua memória, e somente de raro em raro ia aparecer-lhe em sonho, com seu tocante sorriso, tal como outras lhe apareciam. No entanto decorreu mais de um mês, chegaram os rigores do inverno, mas tudo permanecia nítido na memória, como se a separação de Ana tivesse sido na véspera. E as recordações tornavam-se cada vez mais intensas. Quer lhe chegassem ao escritório, em meio à quietude do anoitecer, as vozes das crianças, que preparavam a lição, quer ouvisse um orgão ou uma canção no restaurante, o vento soprasse na lareira, tudo ressuscitava, de repente, em sua memória: o que sucedera no quebra-mar, o amanhecer com aquela névoa sobre as montanhas, o navio chegando de Feodóssia, os beijos. Passava muito tempo caminhando pelo quarto e recordando, sorria e, depois, as lembranças transformavam-se em sonhos e o passado misturava-se, em sua imaginação, ao que viria ainda. Não sonhava mais com Ana Sierguéievna, ela o acompanhava por toda parte, como uma sombra, e vigiava-o. Fechando os olhos, via-a e ela parecia mais bonita, mais jovem, mais terna do que fôra realmente; e ele próprio aparecia melhor do que tinha sido naqueles dias em Ialta. Ao anoitecer, ela o espreitava de dentro do armário de livros, da lareira, do canto da sala, ele ouvia sua respiração, o frufru carinhoso de suas roupas. Na rua, acompanhava mulheres com o olhar, procurando alguma que a ela se assemelhasse...

terça-feira, 26 de abril de 2011

Virginia Woolf




Juntos e à parte

Seu suspiro e depois sua risada, sua melancolia e seu senso de humor tornavam-no estimado por todos, e ele sabia disso, no entanto o fato de ser benquisto não compensava as decepções e, se dependia dessa estima que os outros tinham por ele (fazendo longas, longas, longas visitas a simpáticas damas), não era porém sem amargor, pois nunca fizera uma décima parte do que poderia ter feito e sonhou em fazer quando garoto em Canterbury.
[...]
... mas essa receptividade e extraordinária facilidade para conversar de sua parte é que foram sua ruína, como não raro ele pensava, tirando as abotoaduras e pondo suas chaves e moedas no toucador depois de uma daquelas festas (durante a temporada ele ás vezes saía quase todas as noites)...
[...]
...tinha fracassado, como tantas vezes pensava, porque não conseguia se desligar totalmente da sociedade e da companhia das mulheres, que lhe era tão necessária, para escrever. Envolvera-se muito a fundo com a vida - e a essa altura ele cruzaria as pernas (seus movimentos eram sempre um pouco anticonvencionais e distintos) e, para não se culpar, punha a culpa na exuberância de sua natureza, que comparava favoravelmente com a de Wordsworth, por exemplo, e, posto que ele já dera tanto aos outros, sentia, deixando repousar nas mãos a cabeça, que os outros deveriam por sua vez ajudá-lo, sendo isso o prelúdio, trêmulo, fascinante, estimulante, da conversa a manter; e em sua mente borbulhavam imagens.
[...]
...sairia assim para talvez umas dez festas ou mais na temporada sem sentir nada fora do comum, ou apenas remorsos sentimentais e o desejo de belas imagens - como aquela cerejeira em flor - estagnando-se nele o tempo todo, sem a menor alteração, uma espécie de superioridade em relação ao circunstante, uma impressão de recursos inexplorados, que o mandava de volta para casa insatisfeito com a vida, consigo mesmo, bocejando vazio, volúvel. Mas agora, não mais que de repente, como um raio branco no nevoeiro, (imagem que assomava formada pela inevitabilidade da luz), aquilo tinha acontecido ali; o velho êxtase da vida; sua invencível investida; pois, se não era agradável, ao mesmo tempo alegrava e rejuvenecia, enchendo nervos e veias de filamentos de fogo e gelo; era aterrador.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Lév Tolstói



A morte de Ivan Ilitch


    O médico foi para a sala de visitas e comunicou a Prascóvia Fiodorovna que as coisas iam mal e que só lhe restava o recurso do ópio para abrandar as dores, que seriam tremendas.
     Não mentia o doutor, mas as dores morais de Ivan Ilitch eram infinitamente piores do que as físicas. Resultavam do fato de, naquela noite, ao contemplar o rosto de Guerássim, sonolento, bondoso, de maçãs salientes, acudir-lhe à mente a seguinte indagação: "E se toda a minha vida, minha vida consciente, tivesse sido realmente errada?"
    Ponderou que aquilo que antes acreditava ser totalmente impossível, isto é, não ter vivido como deveria, podia ser verdade. Considerou que as pequeninas tentativas que fizera, tentativas quase imperceptíveis e que logo sufocava, para lutar contra o que era considerado acertado pelas pessoas mais altamente instaladas na sociedade, podiam representar o lado autêntico das coisas, sendo falso tudo mais. E que os seus deveres profissionais, sua vida regrada, a ordem familiar e todos os interesses mundanos e oficiais não passassem de grandes mentiras. Tentou defender tudo aqui perante si mesmo e, de repente, atinou com a frugalidade da sua defesa. Não havia nada a defender.
    "Mas se assim é, estou eu saindo da vida com a plena consciência de ter destruído tudo o que me foi concedido e, se a perda é irreparável, que irei fazer?", pensou. E, deitado de costas, pôs-se a passar em revista a sua vida de maneira completamente diversa.
    De manhã, quando apareceram sucessivamente o criado, a mulher, a filha e o médico, cada palavra, cada gesto deles era a confirmação da tremenda verdade que lhe fora revelada de noite. Reviu-se em cada um - sua existência fora precisamente o que era a deles. E viu de forma espantosamente clara que não passava ela dum imenso e horrendo embuste, que escondia a vida e a morte. 

terça-feira, 19 de abril de 2011

Jens Peter Jacobsen




Niels Lyhne

Experimenta uma sensação de força desconhecida no fato de ver com os próprios olhos, escolher com o próprio coração e modelar a si próprio. Tanta coisa nova aflora à superfície do seu espírito, tantas facetas da sua natureza, antes ignoradas, desperdiçadas, combinam-se maravilhosamente em um todo harmonioso! É o tempo encantado das descobertas, quando ele, cheio de medo e de incerta alegria, cheio de uma felicidade intranquila, descobre a si mesmo. Em primeiro lugar, ele nota que não é igual aos outros; isso desperta-lhe um pudor moral que o torna acanhado, lacônico, arredio. Fica desconfiado, e em tudo que se fala vê alusões aos seus mais íntimos segredos. Por ter aprendido a ler em si mesmo, acredita que todo mundo também poderá ler o que está escrito na sua consciência, evita os adultos e aprofunda a sua solidão. Parece-lhe que que os homens de súbito tornaram-se estranhamente inoportunos. Sente-se vagamente hostil em relação a eles, como se fossem seres de outra raça, e no seu isolamento começa a distingui-los, a observá-los e a julgá-los. Outrora os nomes de pai, mãe, pastor e moleiro davam uma idéia perfeita e suficiente dessas criaturas. O nome escondia a pessoa. O pastor era o pastor e não havia nada mais a dizer. Mas agora ele via que o pastor era um homenzinho jovial, que em casa se fazia ainda menor e tão quieto quanto possível, para não ser percebido pela mulher, e fora de casa embriagava-se de conversas e de discussões revolucionárias e libertárias para esquecer o jugo caseiro.
Eis em que tinha se transformado o pastor.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Rainer Maria Rilke





Os cadernos de Malte Laurids Brigge

Creio que devia começar a trabalhar, agora que aprendo a ver. Tenho vinte e oito anos, e até aqui aconteceu tanto como nada. Vamos repetir: escrevi um estudo sobre Carpaccio, que é mau; um drama chamado "Matrimônio" que quer provar, por meios equívocos, qualquer coisa falsa; e versos. Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo o bastante),- são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se  conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos e regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, - em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria pra outro -), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual à outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só guando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas.

terça-feira, 1 de março de 2011

Jorge Luis Borges





The unending gift 

Um pintor nos prometeu um quadro.
Agora, em New England, soube que morreu. Senti, como de outras
vezes, a tristeza e a surpresa de compreender que somos como 
um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar prefixado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse ali, seria, com o tempo, essa coisa a
mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos de minha casa;
agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e de 
qualquer cor e não sujeita a nenhuma.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música, e 
estará comigo até o fim. Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal.)


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Jens Peter Jacobsen



Niels Lyhne
    
       Continua mergulhado em seus estudos, porém sem método, e a idéia de aprontar-se para lutar e aparecer apenas bruxuleia, vacilante. Frequenta muita gente, mas não vive com ninguém; bem que as pessoas lhe interessam, mas ele não faz nenhuma questão de interessar a elas; e sente diminuir dentro de si aquela força que deveria levá-lo a realizar a sua obra, custasse o que custasse. Já se conforma em esperar, mesmo que tenha que esperar até que seja demasiado tarde. Quem tem fé não tem pressa, é a sua desculpa. E ele tem bastante fé, quando vai ao fundo de si mesmo reconhece que tem uma fé capaz de remover montanhas; mas não consegue fazer esse esforço. De vez em quando irrompe nele um impulso criador, um desejo de ver libertada uma parte do seu eu em seu trabalho, e durante dias inteiros concentra-se num alegre e titânico esforço de modelar a argila do seu Adão; mas não consegue nunca dar-lhe a forma do ideal; não tem persistência para manter a concentração exigida por essa tarefa. Durante semanas hesita em abandonar o trabalho, mas acaba sempre por abandoná-lo e pergunta-se por que haveria de continuar: que pode lucrar com isso? Gozou a alegria da concepção, restam-lhe apenas trabalho e disciplina, cuidar, alimentar, levar a bom termo – e para quê, para quem? Ele não é um pelicano... Diga o que disser, porém, fica descontente consigo mesmo e sente que não correspondeu às exigências do seu próprio ser, e de nada lhe adiantam as especulações e as dúvidas sobre os fundamentos dessas exigências. Enfrenta uma opção, e deve optar; pois a vida é assim: passada a primeira mocidade, cedo ou tarde, conforme a natureza de cada um, cedo ou tarde amanhece o dia em que a resignação vem a nós como o Tentador e procura seduzir-nos, procura levar-nos a dizer adeus ao impossível e darmo-nos por satisfeitos. E a resignação tem doces e judiciosas palavras... Quantas vezes não foram derrotadas as aspirações ideais da juventude, quantas vezes seu entusiasmo não foi espezinhado e a sua esperança aniquilada! Os ideais, os claros e luminosos ideais ainda não perderam nada do seu brilho, mas não percorrem mais a terra ao nosso lado, como nos primeiros dias da nossa juventude; pisaram os largos degráus da experiência e subiram de novo ao céu de onde tinham sido retirados pela nossa fé ingênua, e lá se encontram, cintilantes mas distantes, sorridentes mas fatigados, numa ociosidade divina, enquanto o incenso de uma inerte adoração vai se enrolando até o seu trono em solenes espirais. 
         Niels Lyhne estava cansado; tinham-no exaurido esses repetidos preparativos para um salto que nunca era executado, tudo lhe parecia vazio e sem valor, artificial e confuso, e além disso tão mesquinho; achava que o mais natural era tapar os ouvidos e a boca, e aprofundar-se em seus estudos, que nada tinham que ver com o ambiente irrespirável do mundo, que eram para ele como uma quieta profundeza marinha, com pacíficas florestas de algas e estranhos animais. 

     

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Peter Zirkuli




III

Lâminas apenas.
Nó, fio, laços
e os ligarmos
de tempos a tempos,
numa pausa.
Desfazem-se mais tarde
e gesticulam, espalham-se
em desordem
os corpos, as coisas.
Somos,
mineral, água, células,
o que nos forma.
Quis uma Outra existência.
Ar imperceptível
que tudo envolve
de uma só matéria em mil partículas.
Agora toda a respiração é vertigem,
espinhas afluindo Ă

garganta.
E a visão enjoa-me,
o panorama granuloso,
a gravura ofegante,
nervura de pedra,
que consolo há nesse abraço,
se é apenas
consolo,
um balouçar em êxtase,
o desejo e as lâminas inchadas
por fim aquietados,
o fremente
rabiscar.

Walt Whitman



[Quem Aprende Minha Lição por Inteiro?]

Quem aprende por inteiro minha lição?
O patrão o diarista o aprendiz? . . . . carola e ateu?
O cretino e o sábio pensador . . . . pais e proles . . . . mercador e funcionário e porteiro
           e o freguês . . . . editor, autor, artista e estudante?

Chegue mais perto e comece.
Não é lição alguma . . . . derruba as barreiras para uma boa lição,
E aquela a outra ainda . . . . e de lição a lição.

As grandes leis são cumpridas e acatadas sem discussão,
Eu sou do mesmo estilo, pois sou íntimo delas,
Eu as amo e ficamos quites . . . . não mando parar nem fico fazendo salamaleques.

Me deito absorto e escuto histórias bonitas sobre as coisas e a razão das coisas,
São tão bonitas que cutuco a mim mesmo pra escutar.

Não ouso dizer a ninguém o que ouço . . . . não consigo dizer nem pra mim . . . . é
          lindo de morrer.

Não é uma coisa à toa, este globo redondo e gostoso, se movendo tão preciso e
            eternamente em sua órbita, sem um vacilo ou inverdade de um só segundo ;
Não acho que tenha sido feito em seis dias, nem em dez mil anos, nem em dez
            decilhões de anos,
Nem que tenha sido planejado e construído  uma coisa após a outra, como um 
             arquiteto desenha e executa uma casa.

Não creio que setenta anos seja a duração da vida de um homem ou uma mulher,
Nem que setenta milhões de anos seja a duração da vida de um homem ou uma mulher,
Nem que os anos vão interromper minha existência ou a de qualquer pessoa.

Não é maravilhoso que eu deva ser imortal? como todos são imortais,
Sei que é maravilhoso . . . . mas ser capaz de ver é maravilhoso também . . . . e o jeito 
             como fui gerado no ventre a minha mãe é maravilhoso também,
E como eu não era palpável antes e agora sou . . . . eu que nasci no último dia de
             maio de 1819 . . . . e que de um bebê no transe rastejante  de três verões e três
             invernos começasse a articular e andar . . . . tudo isso é maravilhoso também.

Ter atingido a altura de um metro e oitenta e três . . . . ter me tornado um homem de
             36 anos em 1855 . . . . e estar aqui agora - isso é maravilhoso também,
E que a minha alma abrace a sua neste instante, e nos apaixonemos um pelo outro sem
             que a gente nunca tenha se visto, e talvez nunca nos vejamos, é tão
             maravilhoso quanto :
E que eu possa pensar estes pensamentos é maravilhoso também,
E que eu possa passá-los a vocês, e vocês possam pensá-los e sabê-los verdadeiros
             também é maravilhoso,
E que a lua gire em volta da terra e avance com a terra também é maravilhoso
E que ambas se equilibrem com o sol e as estrelas também é maravilhoso.

Como gostaria de ouvir você dizer o que existe em você que não seja maravilhoso
              também,
Como gostaria de ouvir o nome de todas as coisas entre a manhã de domingo e o
              sábado à noite que não fossem maravilhosas também.
             

sábado, 15 de janeiro de 2011

Rainer Maria Rilke




Precisos e terrenos é o que, por ora, enquanto estamos aqui e somos aparentados com árvore, flor e solo, devemos continuar a ser no mais puro sentido e o que ainda devemos sempre nos tornar! No que me diz respeito, o que morreu para mim morreu entrando, por assim dizer, em meu próprio coração: a pessoa desaparecida, quando a procuro, recolheu-se de forma tão singular e surpreendente em mim, e foi tão tocante sentir que agora ela existia apenas ali, que meu entusiasmo de servir à sua existência nesse local, de aprofundá-la, glorificá-la impôs-se quase no mesmo instante em que a dor habitualmente teria assaltado e devastado toda a paisagem da alma. Quando me lembro do quanto amava meu pai - amiúde na mais extrema dificuldade de nos entendermos e nos aceitarmos! Na infância meus pensamentos muitas vezes se confundiam, e o coração quase parava com a mera idéia de que ele poderia não mais existir; minha existência parecia tão completamente determinada por ele (minha existência que desde o início teve um desígnio tão diferente!) que sua partida teve para minha natureza mais interna o mesmo significado de meu próprio declínio... mas a morte está tão profundamente cravada na essência do amor (contanto que sejamos apenas cúmplices desse fato sobre a morte, sem nos deixarmos desorientar pelas fealdades e suspeitas atreladas a ela) que não o contradiz em lugar algum: para onde ela poderia deslocar a única coisa que tínhamos levado tão inefavelmente no coração senão para dentro desse coração mesmo, onde estariam a "idéia" desse ser amado, seu efeito incessante (pois como poderia cessar essa influência que, já enquanto vivia a pessoa amada, tinha se tornado cada vez mais independente de sua presença tangível)... onde esse efeito sempre secreto estaria mais seguro senão dentro de nós? Onde poderíamos nos aproximar dele, onde celebrá-lo com mais pureza, quando obedecer-lhe melhor senão quando ocorre em uníssono com nossas próprias vozes, como se nosso coração tivesse aprendido uma nova língua, uma nova música, uma nova força!

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Wislawa Szymborska




Torturas

Nada mudou.
O corpo é sensível à dor,
precisa comer, respirar, dormir,
por baixo da pele fina corre sangue,
tem a provisão adequada de dentes e unhas,
ossos quebráveis e articulações extensíveis.
Nas torturas tudo isto é tomado em conta.

Nada mudou.
O corpo treme como tremia
antes e depois da fundação de Roma,
no século vinte antes e depois de Cristo,
torturas sempre as houve e haverá, só a terra ficou pequena
e o que quer que aconteça, é como se fosse aqui do lado.

Nada mudou.
Apenas há mais gente,
juntaram-se novas às velhas culpas,
reais, insinuadas, instantâneas, nenhumas,
mas o grito, com o qual o corpo por elas paga,
foi, é, e será o grito da inocência,
segundo o registro da escala secular.

Nada mudou.
Talvez apenas as maneiras, as cerimônias, as danças.
O gesto das mãos para proteger a cabeça
continua a ser o mesmo.
O corpo contorce-se, debate-se, tenta escapar,
cai redondamente, encolhe os joelhos,
torna-se roxo, incha, saliva e sangra.

Nada mudou. 
Exceto o curso dos rios,
a linha das florestas, dos desertos e glaciares.
É nestas paragens que vagueia a alma,
parte, volta, vai e vem,
alheia a si mesma, intangível,
ora certa, ora incerta da sua existência.
Mas o corpo está e está e está, sem ter outra saída.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Walt Whitman





Folhas de Relva  [Pensar no Tempo]


Pensar em quanto prazer existe!
Você sente prazer quando olha pro céu? Sente prazer com poemas?
Você se diverte na cidade? ou metido em negócios? ou armando uma indicação 
         e eleição? ou com sua mulher e a família?
Ou com sua mãe e irmãs? ou em tarefas femininas? ou nos lindos cuidados maternais?

Tudo isso também flui rumo aos outros ... você e eu fluímos em frente;
Mas no tempo certo você e eu despertaremos menos interesse neles.

Sua fazenda e lucros e safras ... pensar em como você é ocupado; 
Pensar que sempre haverá fazendas e rendimentos e safras .. mas de que valem pra
           você?

O que tem que ser será bom - pois o que é, é bom,
Interessar-se é bom, e não se interessar também é bom.

O céu continua lindo... o prazer dos homens com as mulheres nunca será
          saciado .. nem o prazer das mulheres com os homens.. nem o prazer que
          provém dos poemas;
As alegrias domésticas, o trabalho ou negócio diário, a construção de casas - eles 
          não são fantasmas .. possuem peso e forma e local;
As fazendas e os lucros e as safras .. os mercados e salários e o governo .. eles também
          não são fantasmas;
A diferença entre pecado e bondade não é aparente;
A terra não é um eco ... o homem e sua vida e todas as coisas de sua vida são bem 
          consideradas.

Você não está ao léu.. você se reúne com certeza e segurança ao seu redor,
De você mesmo! Você mesmo! Sempre você mesmo!

Não foi pra difundir você que você nasceu de pai e mãe - foi pra identificar você,
Não foi pra que você fosse indeciso, mas que fosse decidido;
Alguma coisa há tempos preparada e informe chegou e se formou em você,
Portanto você está salvo, haja o que houver.

Cada um dos preparativos compensaram;
A orquestra já afinou os instrumentos o bastante... a batuta já deu o sinal.

O convidado que estava vindo  ...  esperou o bastante por algum motivo ... ele
           agora está acomodado,
Ele é um desses caras bonitos e felizes ... daqueles que só de paquerar  e ficar junto
           é o bastante.
[...]

Você desconfia da morte? Se eu desconfiasse da morte, morreria agora mesmo.
Acha que eu poderia caminhar feliz e bem-vestido rumo à aniquilação?

Feliz e bem vestido vou.
Não sei dizer pra onde, mas sei que é bom,
O universo todo indica que é bom,
Passado e presente indicam que é bom.

Que bonito e perfeitos são os animais! Como minha alma é perfeita!
Como é perfeita a terra, e a coisa mais insignificante sobre ela!
O que é chamado de bem é perfeito, e o que é chamado pecado também;
Os vegetais e os minerais são todos perfeitos ... e os fluidos imponderáveis são
          perfeitos;
Lentamente e com certeza chegaram até aqui, e lentamente e com certeza irão mais 
          além.

Oh, minha alma! Se a percebo me satisfaço,
Animais e vegetais! Se os percebo me satisfaço,
Leis da terra e do ar! Se as percebo me satisfaço.

Não sei definir minha satisfação .. e no entanto a sinto,
Não sei definir minha vida .. e no entanto a sinto.

Juro que agora sei que cada coisa tem uma alma eterna!
As árvores, enraizadas no chão ... as algas marinhas têm ... os animais.

Juro achar que só a imortalidade existe!
E que este estranho esquema é por ela, e a flutuação nebulosa é por ela, e a atração é por ela,
E todo preparativo é por ela.. e a identidade é por ela .. e a vida e a morte, por ela.