sábado, 20 de novembro de 2010

Edwin Morgan



Morangos


Nunca houve morangos
Como os que tivemos
Naquela tarde tórrida
Sentados nos degraus
Da porta-janela aberta
de frente um para o outro
seus joelhos encostados nos meus
os pratos azuis em nossos colos
os morangos brilhando
na luz quente do sol
nós os mergulhamos em acúçar
olhando um para o outro
sem apressar a festa
para chegar ao fim
os pratos vazios
deitados sobre a pedra juntos
com os dois garfos cruzados
e eu me aproximei de você
dócil naquele ar
nos meus braços
abandonado como uma criança
da sua boca ávida
o gosto de morangos
na minha memória
inclina-se de volta
deixe-me amá-lo


deixe o sol bater
sobre o nosso esquecimento
uma hora de tudo
o calor intenso
e o relâmpago de verão
nas colinas de Kilpatrick


deixe a tempestade lavar os pratos

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Só Jóng-Ju





Junto ao Crisântemo


Terá sido para abrir este crisântemo
que o cuco chorou tanto
desde a primavera...

E terá sido para abrir este crisântemo
que o trovão chorou tanto
dentro de nuvens negras...

Flor, pareces a minha amada irmã
de volta agora diante do espelho,
após a longa juventude de longínquas sendas
de peito aflito de saudade e anseio

Terá sido para as tuas douradas pétalas se abrirem
que na noite passada a geada gelou tão fria
e eu não pude nem pegar no sono...

domingo, 7 de novembro de 2010

Jorge Luis Borges

Uma oração


Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.