domingo, 29 de agosto de 2010

jorge luis borges

ensaio autobiográfico

Em minha idade, deve-se ter consciência dos próprios limites, pois esse conhecimento talvez possa levar à felicidade. Quando era jovem, pensava que a literatura era um jogo de variações engenhosas e surpreendentes. Agora que encontrei minha própria voz, parece-me que o fato de retocar e voltar a corrigir meus rascunhos não os melhora muito nem os prejudica. Isso, naturalmente, é um pecado contra uma das principais tendências da literatura desse século - a vaidade de reescrever -, que levou um homem como Joyce a publicar desconexos fragmentos, ostentosamente intitulados Work in progress [ Obra em curso]. 
Suponho que já escrevi meus melhores livros. Isso me dá uma espécie de tranquila satisfação e serenidade. No entanto, não acho que tenha escrito tudo. De algum modo, sinto a juventude mais próxima de mim hoje do que quando era um homem jovem. Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e a fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Kim Tchun-su





Prelúdio para uma Flor

Eu no momento sou um bicho perigoso
Ao toque dos meus dedos você se transforma
na remota escuridão do incógnito

Na ponta trêmula do ramo da existência
você floresce e emudece
sem ao menos um nome

E nessa escuridão anônima que vem umedecendo o
                            canto dos olhos
eu ilumino um cálice de memória

e choro noite adentro
Aos poucos, então, meu pranto se transforma num
                               repentino remoinho da madrugada

e sacode a torre
E quando finalmente permeia até a pedra,
torna-se ouro

...de véus sobre o rosto, minha noiva!

sábado, 21 de agosto de 2010

Walt Whitman

FROM “I SING THE BODY ELECTRIC”

I knew a man, a common farmer, the father of five sons,
And in them the father of sons, and in them the father of sons.

This man was of wonderful vigor, calmness, beauty of person,
The shape of his head, the pale yellow and white of his hair and
beard, the immensurable meaning of his black eyes, the
richness and breadth of his manners.
These I used to go and visit him to see, he was wise also,
He was six feet tall, he was over eighty years old, his sons were
massive, clean, bearded, tan-faced, handsome,
They and his doughters loved him, all who saw him loved him,
They did not love him by allowance, they loved him with personal
love,
He drank water only, the blood show'd like scarlet through the
clear-brown skin of his face,
He was a frequent gunner, and fisher, he sail'd his boat himself,
he had a fine one presented to him by ship-joiner,
he had fowloing-pieces presented to him by men that loved him,
When he went with his five sons and many grand-sons to hunt or
fish, you would pick him out as the most beautiful and
vigorous of the gang,
You would wish long and long to be with him, you would wish to
sit by him in the boat that you and he might touch each other.

domingo, 15 de agosto de 2010

Jens Peter Jacobsen




Niels Lyhne

Feliz é aquele que, em seu luto pela morte de um ente querido, pode consagrar todas as lágrimas ao vazio, ao abandono, à privação daquele que se foi, pois mais penosos, mais amargos são os prantos que espiam a falta de ternura que os dias passados presenciaram contra aquele que agora está morto - e contra quem cometeram-se crimes irreparáveis. Retornam então as palavras duras, as respostas cuidadosamente envenenadas, a censura impiedosa e a cólera injustificada, e também os pensamentos hostis que não se externavam em palavras, os julgamentos precipitados que atravessaram o espírito, o dar de ombros discreto, e o riso oculto cheio de ironia e impaciência - voltam todos como flechas nocivas e cravam profundamente seus aguilhões no peito, seus aguilhões embotados, pois a ponta partida ficou no coração que não bate mais. Este não vive mais, nada mais pode reparar, nada. Agora há bastante amor em teu coração, mas agora é tarde; vai até o frio túmulo com teu coração agora generoso! Chega bem perto... Planta flores e tece coroas: nem por isso estarás mais perto do morto!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Roland Barthes




Ausência

7. Instalo-me sozinho, num café; alguns vêm me cumprimentar; sinto-me acolhido, requisitado, lisonjeado. Mas o outro está ausente, evoco-o em mim mesmo para que ele me retenha na beira dessa complacência mundana que me espreita. Apelo para sua 'verdade'(para verdade cuja sensação ele me dá) contra a histeria de sedução com a qual me sinto resvalar. Torno a ausência do outro responsável por minha mundanidade: invoco sua proteção, sua volta: que o outro apareça, que me retire, como uma mãe que vem buscar o filho, do brilho mundano, da fatuidade social, que me devolva 'a intimidade religiosa, a gravidade' do mundo amoroso.

8. Um koan budista diz: 'O mestre segura a cabeça do discípulo debaixo da água, durante muito, muito tempo; pouco a pouco as bolhas começam a se rarefazer; no  último momento, o mestre tira o discípulo, reanima-o: quando você desejar a verdade como desejou o ar, então saberá o que ela é.'
A ausência do outro segura minha cabeça debaixo da água; pouco a pouco, sufoco, meu ar se rarefaz: é por essa asfixia que reconstituo minha 'verdade' e preparo o Intratável do amor.


terça-feira, 10 de agosto de 2010

Jens Peter Jacobsen




Niels Lyhne

Eu desprezo a imaginação. Quando todo o nosso ser anseia pelo coração de um homem, de que vale abrigar-se na câmara fria da imaginação? E quantas vezes isso não é tudo que nos é dado! E quantas vezes não devemos nos resignar a sermos adornadas pela fantasia daquele a quem amamos, que nos cinge a testa com uma auréola, cola-nos asas aos ombros e nos envolve numa túnica semeada de estrelas, e só nos julgas dignas de amor depois de nos termos revestido dessa fantasia, na qual nenhuma de nós assemelha a si mesma, porque esse disfarce nos incomoda e porque alguém nos perturba, alguém que se joga aos nossos pés e nos adora, em vez de nos tomar simplesmente como somos e desse modo simplesmente nos amar.
[...]
Essa adoração de que somos alvo, essa espécie de fanatismo no fundo é tirânica: somos obrigadas a nos amoldar ao ideal dos homens. Corta-se uma lasca do calcanhar, uma ponta do dedão!... Tudo aquilo em nós que não se adapta a essa imagem ideal deve ser suprimido - quando não pelo abafamento, pelo fato de que é ignorado, sistematicamente esquecido, qualquer expressão espontânea de nossa natureza é negada; por um lado aquilo que não nos é natural ou que não nos é peculiar, isso é freneticamente estimulado, é elevado às nuvens sempre na suposição de que possuímos em alto grau estas qualidades estranhas - e dessas qualidades é feita a pedra fundamental sobre a qual os homens edificam seu amor. Considero isso uma violência contra a natureza. Considero isso o mesmo que adestramento de animais. O amor do homem é o de um domador. E nós nos sujeitamos a isso; mesmo aquelas que não são amadas submetem-se junto com as outras - tão desprezível é a nossa fraqueza! 

Walt Whitman



I AM THE POET

I am the poet of reality
I say the earth is not an echo
Nor man an apparition;
But that all the things seen are real.
The witness and albic dawn of things equally real
I have split the earth and the hard coal and rocks and the solid bed of a sea
And went down to reconnoitre there a long time,
And bring back a report,
And I understand that those are positive and dense every one
And that what they seem to the child they are
And that the world is not joke,
Nor any part of it a sham.

sábado, 7 de agosto de 2010

Jens Peter Jacobsen





Estava tão cansado de si mesmo, dos seus estéreis pensamentos e visões. A vida, um poema?... Não quando se passava a vida a poetar em vez de vivê-la. Como ficava oca, então, como ficava vazia, vazia, vazia! Essa perseguição constante do próprio eu, no rastro das próprias pegadas - e em círculo, naturalmente... Essa comédia simulada: fingir que se atira à corrente da vida e ao mesmo tempo ficar ali agarrado ao anzol, pescando-se a si próprio neste ou naquele curioso disfarce... Ah, se a vida quisesse submergi-lo... A vida, o amor, a paixão, de modo que ele não mais precisasse poetizá-la, porém apenas - em estado de poesia - vivê-la!
[...]
E contudo era lastimável a existência a meio pano, em águas calmas, com a terra à vista; viesse ao menos uma ventania, uma tempestade! Soubesse ele ao menos dirigir-se e desenrolaria todas as velas em direção ao alto mar da vida. E diria adeus aos dias monótonos; adeus, momentos de felicidade medíocre; adeus ainda, pálidas emoções, que deviam ser aquecidas pela poesia para poder brilhar um pouco; e os débeis sentimentos, que precisam ser envoltos em sonhos tépidos, e ainda assim perecem e frio, adeus! Tomarei o rumo de uma terra onde as sensações enrolam-se como lianas opulentas em todas as fibras do coração - uma floresta virgem; para cada ramo ressecado há vinte outros em flor, para cada um que floresce, mais cem que brotam...

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Rainer Maria Rilke





Sobre Ironia


Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para os objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. Busque o âmago das coisas, aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como que a beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade de seu ser. Sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte.

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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Jens Peter Jacobsen




Niels Lyhne

Há homens que são capazes de assumir os seus sofrimentos até o fim, naturezas vigorosas que experimentam as suas forças justamente sob o peso da infelicidade, enquanto outros - mais fracos - abandonam-se à dor sem resistência, como vítimas de uma moléstia. E como uma moléstia, penetra-os o sofrimento, embebe-se no âmago do seu ser, identifica-se com eles, assimilando-se através de uma luta prolongada e desaparece com a volta da saúde.
Mas existem também seres para os quais o sofrimento significa um atentado à sua pessoa, uma crueldade, e nunca uma provação, um castigo ou um mero capricho do destino. Tomam-no como um golpe de tirania odiosa e dele guardam sempre uma cicatriz no fundo do coração.
[...]
Com sua fé, não tinha arrancado ao céu nenhum milagre; nenhum Deus tinha respondido ao seu apelo; a morte agarrara sem vacilar a sua presa, como se nenhuma muralha de preces se levantasse até as nuvens.
Em sua alma fez-se um grande silêncio.
[...]
E ele desafiou Deus e bani-o do seu coração [...] quando ouvia alguém dizê-lo, franzia a testa numa expressão de revolta. À noite, quando ia dormir, experimentava um estranho sentimento de dignidade solitária; [...] Ele renunciara a proteção divina, nenhum anjo inclinava-se sobre sua cabeceira; sozinho e desamparado, ele se dispunha a enfrentar o sono noturno como quem atravessa um lago escuro e misterioso, e a solidão o  submergia em círculos cada vez maiores e mais distantes: mas ele não rezava, podia até chorar de desgosto, mas não cedia.
[...]
Pois ele pertencia a essa classe por assim dizer artística e superficial de naturezas religiosas, de acordo com o feitio peculiar dos seus dotes de inteligência: dessas que não temem harmonizar um pouco os contrários, e facilmente alteram os limites e os fundamentos de uma crença, pois desejam antes de tudo afirmar a sua personalidade e, sejam quais forem as esferas em que voem, apenas fazem questão de ouvir a seu próprio espírito adejante.
[...]
Ele tomou o freio nos dentes, e lança-se a cada atalho novo que se ofereça, contanto que se afaste do que era outrora o refúgio dos seus sentimentos e dos seus pensamentos.
Experimenta uma sensação de força desconhecida no fato de ver com os próprios olhos, escolher com o próprio coração e modelar a si próprio. [...] É o tempo encantado das descobertas, quando ele, cheio de medo e de incerta alegria, cheio de uma felicidade intranquila, descobre a si mesmo.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Hans Borli





UMA COISA É NECESSÁRIA

Uma coisa é necessária – aqui
neste nosso mundo díficil
de sem-abrigos e desterrados:

Fixares residência em ti.

Entra pela escuridão
e limpa a fuligem da lâmpada.

Para que as pessoas na estrada
possam entrever uma luz
em teus olhos habitados.

(1974)